quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Corpos cartografados



Esta é minha primeira postagem em um fotoblog. Primeira porque considero que esta atividade será um exercício mais sistematizado de escrita e não blogagens desinteressadas como já cheguei a fazer em blogs anteriores.

Sinto-me animado a escrever. E essa animação vem em hora urgente, pois não escrevo ha tempos. Apenas leio, releio e torno a ler uma variedade de textos que vão entrando em minhas formações discursivas sem apresentar um caráter de dinamicidade reflexiva e interativa. Esta dinamicidade, da qual sinto grande necessidade, supõe que eu reflita sobre o que eu leio, que eu escreva e, se possível, que eu seja lido para que minha escrita consolide-se.

Meu corpo está cartografado qual um palimpsesto. Linhas existenciais estão dispostas sobre ele a ponto de o definir em uma geologia e genealogia que normalmente não consigo compreender direito. Dessa forma, escrever conforma um trabalho de arqueologia para que eu vislumbre os vários idiomas, as várias mensagens, os vários dispositivos institucionais que me configuram, independente se deles tenho consciência ou não.

A escrita é útil, apesar dos seus naturais mecanismos de mascaramentos dos sintomas que urgentemente desejamos sempre desvendar. A escrita é como um fármaco ou "pharmacon", como Platão a chamava, em sua tentativa de sistematizar as melhores formas de educação para o idealizado homem de sua república. A escrita é uma instituição cultural que coloca o homem no patamar de sujeito civilizado. Por escrita compreendo qualquer forma de expressão de conteúdos que visam a transmissão de alguma mensagem direta ou indireta. Desse fármaco, não adianta ficarmos acautelados, pois definitivamente seu lugar se sobressaiu ao da oralidade, que exigia a presença dos interlocutores e assegurava um tom mínimo de confiabilidade.

De todas as linguagens, penso que a escrita é a mais formal em relação aos protocolos de controle sócio-culturais. Ela é normatizada para que as mensagens sejam compreensíveis, plausíveis e, infelizmente, morais e éticas. O peso dos privilégios de sermos civilizados abate-se sobre nossas cabeças a cada vez que escrevemos. Desde uma simples frase a um ensaio complexo, olhares de todas as épocas e de todos os lugares debruçam-se sobre nós e sentimos o peso do fármaco, que igual ao medicamento rotineiro, pode nos curar ou nos tirar a vida de vez.

Na dinâmica da positividade, vejo a escrita como a concebe Peter Greenaway, em seu intenso filme "The Pillow Book" (1995). A positividade é saber que se pode manipular estratégias de convívio com a técnica da escrita e da leitura e, com isso, seu complexo formador de existencidades subjetivas e intersubjetivas. A protagonista do filme é uma jovem chamada Nagiko, em cujo corpo o pai tinha o hábito de escrever a cada aniversário da garota. Na sua maturidade, e em uma hora de criatividade existencial, Nagico passa a escrever sobre corpos alheios para compreender o que significava aquele exercício misterioso. Seu objetivo parece ser o de traduzir o que ela mesma carregava em seu próprio corpo. Para ler-se, parece que Greenaway nos diz que devemos escrever. E essa escrita deve dirigir-se ao outro para que nele percebamos o quanto e o quê há de nós nos trâmites da energia desejosa.

O fármaco-escrita em seu caráter positivo parece ser esse exercício de não nos completarmos em nossa própria egoicidade de escrita-leitura e de consolidação de significados. Ele exige que entremos na alteridade radical que é o deslocamento do ego no outro que o forma de modo sempre inclusivo. Mesmo que esse outro seja constituído por um repertório de contradições e de posições recusadas e evitadas por aquele nosso núcleo duro de personalidade que visa encontrar um equilíbrio exato do que pensa ser e do que pensa ser capaz de representar.

Sei que meu corpo é feito por linhas de sentidos, de desejos, de cortes de fluxos energéticos e de ligações não tão localizáveis. Meu corpo inteiro é cartografado e cartografável, no entanto, são cartografias ou existenciadades heterogêneas. Várias escritas de culturas, locais e épocas diferentes foram se sobrepondo até que meu corpo aparentasse tomar forma. Mas esta forma não se estabiliza em uma pretensa fase de maturidade. É um construto sempre do devir. Uma forma que não se dá a uma concretude e a um equilíbrio que seriam feitos por uma síntese exclusiva do "se é isso, não pode ser aquilo". Como Deleuze e Gattari nos falam no seu livro "O Anti-Édipo", meu corpo vai se fazendo por uma síntese inclusiva, portanto, ele não é nada mais do que um pólo fantasmagórico que serve de encontro para coordenadas heterogêneas de existencialidades. Cartografia, portanto, de difícil acesso para o clássico arqueólogo que procura, após a descoberta de camada por camada das existências anteriores, o núcleo duro dlo que seria a verdade intencionada.

Bem, acho que tentei explicar demais o porquê desse fotoblog. O objetivo é o de escrever. Escrever para não me adequar à mania de enviar mensagens rápidas e superficiais, como é de hábito nos meios contemporâneos de comunicação. Escrever para exercitar minha linguagem. Escrever para delirar que esclareço minha compreensão de uma infinidade de coisas. Escrever para brincar de arqueólogo de minha própria existência. Escrever para agarrar a fugacidade de realidades que chegam esfaceladas a minha percepção. Escrever para brincar de Homero que chega a Ítaca e conta para sua família e amigos como foi engenhoso o seu combate com o Fado. Escrever uma escrita que me proporcione o conhecimento, mesmo sabendo que a exatidão e a completude desse conhecimento seja uma quimera. Uma quimera que me dará a ilusão de um estar aqui no mundo. Uma escrita provisória advinda de um lugar provisório e tocado pela produtividade defensiva, mas também lúdica, que talvez me torne mais localizado na radical alteridade da vida.