terça-feira, 26 de fevereiro de 2008




Quase

(Mário de Sá-Carneiro)


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Dragões e paraísos: gênero e rizoma



No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades – que não aconteciam, mas que importa? – a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
(Caio Fernando Abreu: 2005, p. 135)


A contística de Caio Fernando de Abreu em Os dragões não conhecem o paraíso, com sua singular beleza construtiva e inusitado olhar sobre o humano e as coisas, oferece-nos um campo fértil para refletirmos sobre modalidades de cartografias subjetivas que podem ser construídas e veiculadas pelo texto literário.
A coletânea específica é formada por treze contos que, grosso modo, tratam de personagens dispostos em situações de abandono pessoal e/ou social; amores não-retribuidos; medo/desejo da proximidade com a morte; identificação errática ou simétrica com pessoas, coisas, situações e animais; entre outras situações de desequilíbrio/re-equilíbrio que colocam o sujeito na condição do entre-lugar. Uma legião de tipos excêntricos está jogada na procura de mecanismos que consolidem sua ânsia de ativar-se como sujeitos mais ativos, ou ao menos recíprocos para com os demais sujeitos, em detrimento da lastimável condição de títeres de arbitrárias forças territorializantes a sua volta.
Do conjunto de narrativas, verticalizamos quatro contos que melhor refletem o tipo de contexto e comportamento úteis para este nosso trabalho. Predominantemente, tal análise será feita com o auxílio de conceitos da teoria de gênero, com predomínio da perspectiva de Judith Butler (1999) e, ainda, com a esquizoanálize, proposta por Felix Guattari (1992) em seu trabalho, ora isolado ora em conjunto com Gilles Deleuze (1966). Ressaltaremos nesse encontro de reflexões o hipotexto teórico freudiano que, por vezes, funciona como base para os dois desdobramentos.
Os dragões, ou subjetividades heterogêneas e proteiformes, de Caio Fernando Abreu podem ser acompanhados, com maior proximidade nos contos: Linda, uma história horrível; O rapaz mais triste do mundo; Dama da noite, e, no conto paratextual, Os dragões não conhecem o paraíso. Outros, até mesmo pelo rigor temático da coletânea, também apresentam similaridades com as questões a ser tratadas; porém, acreditamos que este corpus dá conta de exemplificar o contexto e a substancialização diafána dos dragões que são naturalmente ignorantes ou, por outro lado, conscientemente expulsos dos paraísos dos desejos permitidos; paraísos que o autor nos apresenta com elegância estética, pertinência crítica e farta dose de ceticismo que de tão pungente beira a esperança.
Em Linda, uma história horrível, acompanhamos o retorno de um rapaz, não-nominado à casa de sua mãe. Essa volta parece ser a ação final do protagonista que, aidético já na fase de contaminações crônicas, e abandonado pelo companheiro de sua relação homo, procura auxílio no decrépito corpo de sua mãe. Decrepitude humana e coisal formam a moldura da diegese que é sintetizada na figura da velha senhora, do lar que parece encerrá-la viva e, sobretudo, da pequena e velha cadela chamada Linda.
Esta narrativa aborda o tema de uma subjetividade que se manteve resistente e libertária diante de cartografias sócio-culturais de configuração do sujeito. No entanto, a narrativa parece apontar para a terrível punição do acaso, que é a AIDS, como querendo criar a lição moralista de que qualquer liberdade individual acarreta danos para o corpo social e o sujeito infrator sofre as penalidades pela culpa. Cabe ao protagonista apenas o gesto final de encarar o inevitável ocasionado por uma espécie de culpa irreparável. Vejamos o desfecho:

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpuras, da cor antiga do tapete da escada – agora, que cor? -, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios
- Linda - sussurrou. – Linda, você é tão linda, Linda (Caio Fernando Abreu, 2005, p. 28).

O protagonista, em sua etapa final de via-crucis, descarna-se do lugar social que usufruía antes. Sabemos que seu companheiro o abandonou, sabemos que sua profissão estagnou-se e que sua vida social não terá continuidade. Sobretudo sabemos que seu fluxo libidinoso parece cortado pela contingência física e suas conseqüências. No entanto, a libido esbate-se ainda incessantemente. Move-se, aí, com mais vigor aquela aparelhagem maquínica, nos dizeres de Deleuze e Guattari (1966), que fomenta e utiliza as possibilidades restantes para a vida continuar.
Assim, o rapaz, mesmo acometido pela cronicidade da doença, ainda possui energia para identificar-se com os seres a sua volta. Essa identificação dá-se na aproximação feita com a mãe, na observação do envelhecimento do apartamento e de seus móveis e, sobretudo, na decadência da cadela.
Estes sinais, mais do que representar a negatividade óbvia da vida, demonstram a energia em fluxo. O sujeito não está congelado em uma instância final. Não é um produto acabado de situações esperadas ou não-esperadas, mas sim uma vida ainda em produção; ou como nos ensina Deleuze e Guattari, quanto ao contexto edipiano que se estende para toda a vida, quanto aos processos de substancialização e deslizamentos identificações: “A regra de produzir sempre o produzir, de inseri o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção produção”. (1966, p. 13).
O sujeito luta contra a morte, situação de inação, e, conseqüentemente, contra o cessar do fluxo libidinoso. O deslocamento do ego nos seres do seu campo vivencial, mesmo que tais seres apresentem uma insidiosa decrepitude, por mais paradoxal que possa parecer, é sinal de que a vida continua a fluir e a procurar alternativas para os cortes que lhe são feitos.
No segundo conto, O rapaz mais triste do mundo, Caio nos cria uma claustrofóbica situação envolvendo um homem mais velho, um rapaz e um homem observador no espaço de um bar de público alternativo. Um espaço que nos é apresentado como se fosse

Um aquário de águas sujas, a noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária, eles navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico – sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito das trevas do parque, na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas – reflete, enquanto navega. ( 2005, p. 55)

O homem observador é o narrador homodiegético, pois conta a estória sem dela, aparentemente ser o protagonista. O caso maior envolveria um outro homem, na faixa de quarenta anos, que aparenta cansaço, desilusão e começa a beber demais.A companhia desse homem é um rapaz que aparenta ter quase vinte anos “bebendo um pouco demais, não muito, como costumam bber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de adolescência”. ( 2005, p. 56).
Essa dupla é observada pelo narrador que se coloca à parte, mas bem atento ao encontro a ponto de não perder nenhum dos detalhes que envolvem o casal atípico da madrugada. Amorosamente são percebidas as situações de distanciamento, de solidão, de necessidade de carinho e de fisicidade, de confusão afetiva e, sobretudo, da certeza de que as pessoas fazem qualquer coisa para espantarem a solidão tão presente na madrugada de uma cidade grande.
Parece, que de início, cabe ao homem mais velho aconselhar o adolescente sobre os bons caminhos da vida e, por sua vez, cabe ao rapaz expor suas dúvidas e seus desejos de encontrar um lugar social condigno com os planos de sua família e do bom senso comportamental do seu meio. Com as horas passando, o bar prepara-se para fechar e o rapaz, que trabalha como entregador de flores, propõe pagar a conta, no que é impedido pelo homem mais velho. A conta é paga e horas e horas de convívio confuso e difuso são coroadas por toques sedentos de outridade:

Ternos, pálidos, reais: eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as mãos, deois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços do rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens sozinhos no meios de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do que se amariam se estivesse à caá de outro corpo, igual ou diverso do deles – pouco importa, tudo é sede. (2006, p, 62)

Interessa-nos, desse encontro necessário, fortuito e nada fugaz, acompanharmos mais de perto a escondida figura do narrador-observador que do seu canto, exercita a arte de viver no outro o desejo que lhe sai pelos poros e pela boca e não pode ser interditado. O narrador, desdobra-se, então no outro, ou outros, que bebe e procura caminhos para seu fluxo de vida percorrer; o outro que também se coloca como o de fora-dentro da relação que capta, com tanto cuidado, e que preenche sua vida com os fragmentos a sua frente. Curiosa personagem que conclui:

Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esses três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós somos um – esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. É preciso que não exista o que procura, caso contrário o roteiro teria que ser refeito para introduzir Tui, a Alegria. E a alegria é o lago, não o aquário turvo, névoa, palavras baças: Netuno, sinastrias, E talvez exista, sim, pelo menos para suprir a sede do tempo que se foi, do tempo que não veio, do tempo que se imagina, se inventa ou se calcula. Do tempo, enfim. (2006, p. 62)

Do aquário limitado, o campo vivencial é transformado em lago. Espaço alargado e mais propício a juntarmos os elementos da narrativa para configurarmos o observador na figura do rapaz mais triste do mundo. Sim, também ele passa a ser, pela identificação com os tipos da madrugada, a pessoa mais triste do mundo, tal qual aquele homem de quarenta anos e o adolescente que se oferece para pagar a conta, apesar dos seus parcos recursos advindos do trabalho de entregador de flores.

O terceiro conto, Dama da noite, trata do óbvio tema da prostituta oferecendo seu trabalho a um adolescente. O encontro também se dá em um bar e o rapaz de classe média aproveita para conhecer mais a fundo o estranho tipo que está a sua frente e que fala, de modo compulsivo, sobre os planos tão queridos e fracassados de sua vida.
A prostituta é a narradora-protagonista. Por sua boca, acompanhamos suas reações e as reações do rapaz que lhe solicita o programa. De início, vemos uma subjetividade substancial, ciente do seu papel social, de suas estratégias de encontros e de seus desejos tanto carnais, quanto espirituais. Ela própria nos metaforiza sua condição, julgando conhecê-la. Vejamos a reflexão que permeia toda a narrativa:

Como seu eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código. Sei lá. Você fala qualquer coisa tipo ba, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota – ta me entendendo, garotão? (2006, p, 83)

A metáfora da roda gigante parece atentar para o fato que o tecido social elabora espaços oficiais para a dignidade e funcionalidade dos desejos permitidos, enquanto aqueles não corroborados são jogados em um espaço excêntrico ou inexistente nas possibilidades accionais. A protagonista, no que seria seu sórdido lugar de ação, parece entender a contrapartida de sua condição, mas assume o que lhe é esperado, como podemos acompanhar em sua fala:

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez sta escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. (2006, p. 86)

São colocadas características previsíveis para este tipo, além do caráter crítico à subjetividade do confronto. Aí, no encontro que se torna beligerante, a narradora coloca-se como aquela que cobra ações mais espontâneas por parte da juventude acéptica que a rodeia. Ela nos fala da juventude que não tem outros sonhos, senão aquele de cultuar a si mesma nos espelhos modernos do narcisismo fast food.
O encontro da dupla não dá em intimidade alguma. Ambos não conseguem travar nenhuma intimidade, depois de tantas feridas abertas. De vilã, acompanhamos a dama da noite transformar-se na moralista que denuncia hipocrisias de uma época. Mas, em seguida, vemos um outro deslocamento, que é mais interessante e produtivo para nossas reflexões futuras. A perigosa protagonista infantiliza-se mostrando uma de suas facetas de pessoa frágil, mesmo que diante daquele que seria seu algoz:

Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho. Eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo o dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada”. (2006, p. 88)

O ser do pós-tudo parece abarcar caracteres antangônicos da formação da personalidade da protagonista. Dessa forma, as ações previsíveis são penetradas por ações imprevisíveis e o sujeito desmobiliza o aparato sócio-cultural a sua volta. E a criança assustada se coloca desejosa daqueles tempos e espaços de outrora, quando se podia brincar de ser personagens em fluxo contínuo e não tão controlado como no presente.
O último conto que escolhemos, é aquele que dá título à coletânea: Os dragões não conhecem o paraíso. Seu início é titubeante, pois aponta para uma realidade fantasiosa e paradoxal: “Tenho um dragão que mora comigo. Não, isso não é verdade. Não tenho um dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém” (p. 129). No entanto, a metáfora vai deixando o campo retórico e abrangendo a vida do protagonista que passa a descrever esse dragão:
Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço – seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei sozinho nesse apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia,numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes ( a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo. (2006, p, 129)

Sim, um dragão havia dividido o espaço com o protagonista. Desse convívio, surgiram as querelas com os vizinhos que não estavam habituados com os comportamentos típicos do estranho animal. Normas foram colocadas e sistematicamente quebradas e a obrigação de uma adequação do animal ao condomínio se fazia necessária. Mas como adequar um animal que nem pode ser visto, já que o dragão era invisível, ao regime dos vizinhos e das demais pessoas?
Se o animal não podia ser visto, apesar de sua ruidosa presença, seu cheiro era sentido. Hortelã e alecrim davam o tom daquela conversa que sempre ocorria no lado direito do peito do protagonista, pois o bicho lhe falava diretamente do coração. E suas falas são falas de amizade, de parceria para que atitudes tidas como infantis tenham seu lugar nas relações humanas.
O protagonista diz que o dragão vem e vai. Ele não é uma dimensão constitutiva fixa do ser humano. E quando ele parte, instala-se o deserto do poder amar e, conseqüentemente, do poder viver de acordo com os seus desejos.
Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades – que não aconteciam, mas que importa? – a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
(2005, p. 135)

Para o narrador-progonista, os dragões são temporários, mais do que seres substanciais, eles são estados de ação que tomam contam das pessoas e as tornam capazes de agir de modo diferente dos comportamentos previsíveis e emoldurados pelo senso comum. A partida do dragão corresponderia ao esperado amadurecimento e suposto enquadramento do sujeito às regras vigentes. Deus e o amor deveriam suprir a falta do dragão, pois seriam seus correlatos mais próximos. Porém, quando se olha para fora das janelas, o que se vê é uma cidade vazia de dragões e, conseqüentemente, vazia de Deus e de amor.

Quando acompanhamos as quatro narrativas sumariadas, percebemos que as personagens estão agindo no campo da flexibilidade accional. Suas características emergem de uma cartografia invariável para espaços nos quais a regra maior é a plasticidade subjetiva.

As tempestades de Shakespeare e de Peter Greenaway: construção e descontrução intersemiótica


Somos sujeitos de uma época que nos apresenta artefatos artísticos complexos e proteiformes. Tais produções são configuradas por linguagens tradicionais, como a escrita, a fala, as imagens, e são constantemente dimensionadas para um campo aberto a outras linguagens e veículos midiáticos presentes, porém colocados em nível sócio-cultural tido como inferior. No entanto, apesar de existir secularmente uma hierarquia entre as linguagens e os meios, a produção textual contemporânea está imersa em uma miríade de intersemioses criativas que encantam os receptores e, ao mesmo tempo, demandam suportes teórico-críticos e interpretativos multidisciplinares.
Do conceito de texto tradicional, a contemporaneidade caminha para um deslocamento capaz de abranger a heterogeneidade constitutiva e funcional das mensagens artísticas e não-artísticas produzidas. Texto, pois, transforma-se em um fenômeno lingüístico de estrutura e extensão heterogêneas e inclusivas em relação a elementos outrora tidos como exteriores.
Neste quadro, no qual o texto escrito enriquece-se com elementos de outras semioses e de mídias ou hipermídias com grande poder tecno-interativo junto a um público que se massifica rapidamente (GOSCIOLA, 2003, p. 37), verticalizamos nosso objeto de estudo. O mesmo é produto da predominante interpenetração de semiose escrita, a peça de William Shakespeare A tempestade (publicada em 1623), com o texto fílmico do diretor inglês multimidiático Peter Greenaway, A última tempestade ( Prospero’s Books), produção de 1991.
O texto clássico de Shakespeare é a última peça do autor e, naturalmente, condensa toda a tecnologia de escrita apreendida de forma individual e de migração epocal. Ou seja, a época elisabetana tem os seus valores refletidos nas ações do Duque e Mago Próspero. Além disso, tal texto é tido como um dos ápices daquilo que a literatura conseguiu fazer no Ocidente, tornando-se, ao lado dos clássicos gregos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, marcos da capacidade criativa no campo da escrita literária.
Essa narrativa shakespeareana trata do projeto de vingança de Próspero, protagonista que era o Duque de Milão, um dos ducados mais prósperos de sua época. O Duque, no entanto, começa a afastar-se das questões políticas para mergulhar nos estudos de todos os livros disponíveis em sua época, em particular livros de magia. Nesse contexto, seu irmão Antônio junta-se a Sebastião, irmão do Rei de Nápoles, e rouba-lhe o Ducado, desterrando-o, com sua pequena filha Miranda, para uma ilha desconhecida.
Ao partir para a ilha do desterro, Próspero recebe a ajuda de Gonzalo, probo e velho conselheiro do Rei de Nápoles. A ajuda materializa-se em livros, comidas e outros bens úteis, para o desterrado manter-se vivo, ao lado de sua filha. Desses bens, o Duque traído valorizará sobremaneira os objetos de seu maior afeto que são os livros.
Quando Próspero chega à ilha, vence uma velha bruxa, Sycorax, que dominava o lugar e adota o seu filho, mistura de monstro e homem, Caliban. Grande parte do seu tempo é devotada aos estudos de magia para o fortalecimento de seu poder sobre os espíritos e elementos da ilha, e para a educação de Miranda e de Caliban. Porém, o objetivo de ensinar Caliban a ser humano não tem sucesso e o mago o transforma em reles e rebelde serviçal.
O grande objetivo de Próspero é vingar-se daqueles que o traíram. E a peça inicia-se justamente no momento em que ele coloca seu plano de vingança em curso. Com a ajuda do espírito do bem Ariel, fomenta uma grande tempestade sobre um navio, no qual todos os envolvidos no caso da traição (Antônio, Sebastião, Gonzalo, Alonso, entre outros) encontravam-se. Os náufragos dão na ilha e passam a ser encantados, até Próspero revelar as razões da situação e, em vez de puni-los, acaba por perdoá-los. Sim, o homem traído, após conversar longamente com Ariel sobre as falibilidades humanas e as potencialidades educativas do amor para com os homens frágeis em seu caráter, resolve perdoar no lugar de punir. Dessa forma, tudo termina bem quando se está bem.
A narrativa possui outras células accionais, que são ancilares; no entanto, o tema central ficcionaliza sentimentos humanos, tais como amor, ódio e perdão, que alicerçam a realidade julgada como verdadeira pelos sujeitos que nela estão inseridos. No caso em questão, a narrativa é permeada de situações oníricas, fantásticas e, em uma espécie de vanguarda de séculos antes, surrealistas. Estes elementos dão ao conjunto a moldura daquelas narrativas de caráter alegórico; ou seja, escreve-se um sentido indicando outro sentido subjacente ao primeiro. Assim, a idéia da tempestade diz respeito não à inclemência climática, mas às perturbações anímicas do ser humano.
Como narrativa literária, o autor veicula, com elegância e firmeza, uma mensagem que se firma como imorredoura, pois atravessa os séculos e ainda hoje fomenta reflexões sobre tópicos como: a realidade e o sonho; a maleabilidade dos sentimentos; e os contatos secretos do homem com as misteriosas forças da natureza. Esses elementos ocasionam um ganho de causa para a escrita que atingiu seu ápice e continua a fazer escola nos tempos contemporâneos.
Do quadro dado, acompanhamos a evolução incessante das estruturas midiáticas e podemos perceber que os temas universais são enriquecidos quando passam de um meio de transmissão para outros. A mudança de semiose parece refrigerar o tema e ampliar o seu leque de demanda. Assim, no final do Séc. XX, quando Peter Greenaway roteiriza e filma o seu Prospero’s Books, passamos a ter nas mãos um produto tecno-estético farto de questões para serem discutidas sobre o encontro e a intersecção de linguagens diferentes, bem como a relação entre perspectivas representacionais de épocas diferentes.
De início, o campo de pesquisa inibe-se com a fartura do material resultante do encontro ente as artes, literatura e cinema, e do encontro intersemiótico, signo lingüístico grafemático e signo lingüístico imagético, para mencionar apenas os dois tipos de semas de base que, na realidade, coabitam com variados outros semas o palimpseto textual. Por outro lado, suportes teóricos vão sendo conformados rapidamente para que se dê conta de tão engenhosas e cativantes produções que instigam, apesar do natural desnorteamento, o público contemporâneo.
Preconceitos quanto a tais imbricações de linguagem são abundantes, como nos alertam a pesquisadora francesa Jeanne-Marie Clerc (1985). Para ela, o campo de pesquisa que usualmente restringe-se a academias, elege para pesquisa objetos que tenham certa pureza de constituintes e funcionalidade pragmaticamente compreendida. Dessa forma, no caso específico de estudos sobre o encontro entre literatura e cinema, deve-se precaver contra dogmas e preconceitos tais como: quanto ao texto escrito – seu valor cultural de produto elitizado; a singularidade da composição individual; o valor da abstração educativa que o produto fomenta no receptor; a aura estética e ética que emana do produto escrito; entre outros; quanto ao texto fílmico – sua natureza de produção de massa e conseqüentemente seu alto poder de alienação; o descontrole do artista sobre o produto final; a qualidade dos valores éticos, determinada pelo aspecto quantitativo de recepção; e o nivelamento por baixo do poder de abstração causado pelas imagens e outras linguagens presentes no objeto fílmico.
Apesar de tantas contrariedades, é inegável percebermos que uniões do tipo literatura e cinema geram uma tecnologia completiva e produtiva quanto às linguagens de base. Quanto a sua funcionalidade, vale lembrarmo-nos do veredicto de Platão à escrita, quando ele a chama de Phármaco: algo semelhante ao remédio que não pode ser valorado em si mesmo, mas, sim, pelo uso que dele se faz; ou seja, nenhuma semiose é, em si mesma, positiva ou negativa, e tais judicações só deveriam ser feitas ao produto que já encerra determinada mensagem.
Clerc (1989), que, aqui, acompanhamos mais de perto, alerta-nos para a necessidade natural dos encontros tecnológicos e nos chama a atenção para o conceito de influência que alicerça essas relações. A autora nos lembra de que o cinema, em seus primórdios, foi auxiliado pelo texto escrito já consolidado. Os irmãos Lumiére usavam obras de Júlio Verne e de contistas clássicos como Charles Perrault, Hans Christian Andersen, os irmãos Grimm, entre outros, para conquistar a curiosidade do grande público e disseminar mais rapidamente sua produção. No entanto, esse sentido de influência criaria irremediavelmente a condição de subserviência de uma linguagem para com a outra. Quanto a isso, Clerc nos alerta que

[le] concept d’influence cinématographique, depuis les années 60, est en passe de tomber em désuétude.Les nouvelles conditions de création et de réception des objets culturels, au sein de cette civilisations marquée par l’empreinte des mass media et des loisirs, aboutissent à transformer considérablement les rapports entre l’auteur et son public, entre l’oeuvre et le monde. L’émergence de nouveaux fonctionnements imaginaires, en étroite relation avec l’illusion réaliste sécrétée par les technologies iconiques, aboutit à modifier la nature et les fonctions de la visualité, dans un univers où réalité et fiction s’échangent et s’interpénètrent constamment. (1989, p. 273-274)

Os novos funcionamentos de tecnologias de produção de sentidos estão jogados no circuito comunicacional de massa e seu uso flexibiliza o conceito de influência. Se antes, como na ótica de Walter Benjamin (2000), a qualidade de formação e de transmissão de mensagens estava sob o domínio predominante da narrativa oral contada por quem a vivenciou ou a escutou de fonte segura, na contemporaneidade, sabe-se que a linguagem de qualquer meio tem o mesmo poder de veicular e persuadir o público. Podemos repetir, então, a máxima de que o meio é polivalente em sua estruturalidade e funcionalidade.
Ainda com Clerc (1989), vejamos sua reflexão que baliza pragmaticamente nossos estudos comparativos:

[...] Ces interférences retentissent inévitablement sur la conception de l’oeuvre où s’abolisent les distinctions e les catégories. De même que la réalité où baignent les individus est imprégnée de fantasmes, de même les modes d’expression cinématographique et romanesque se rejoignent dans une collaborations où l’authenticité documentaire de la photographie cautionne l’irréalité de l’image mentale. Mais, plus que jamais, ces oeuvres mixtes posent question au langage, dans l’utilisation logique et rationnelle qui fondait jusqu’alors des siècles de culture occidentale. C’est autour de cette problématique du langage que se cristalliseront désormais les rapports entre less deux arts. ( p. 274)

No lugar de valorar a contribuição de uma linguagem para outra como influência original e, portanto, superior, a autora nos relembra da validade operacional das duas linguagens, independentes de variáveis culturais e de época. Toda linguagem possuiria em sua base o poder de representar, no caso, artisticamente a realidade. Dessa forma, o que vale é acompanhar o procedimento estrutural na articulação sêmica e intersemiótica.
Prospero’s Books, de Greenaway, entra aqui como um exemplo dessa coabitação harmoniosa. O diretor hipermidiático aproxima-se do texto clássico de Shakespeare com toda a reverência necessária, porém reveste-o dos avanços tecnológicos do hipertexto contemporâneo. Acompanhamos, no filme, o texto clássico em sua inteireza grafemática, já que as letras manuscritas estão na tela, ou em nível de sobreposição a alguma imagem, ou em nível de subposição. A linearidade do código narrativo é mantida com, inclusive, direito ao começo in media res, tão caro à necessidade de contensão do texto trágico. Acompanhamos e compreendemos bem a estória de Próspero disposta na película.
A adaptação estaria no campo da normalidade se o diretor, como já mencionamos, colocasse-se como um receptor apassivado de um poderoso texto. O que não é o caso, pois aos tradicionais mecanismos da literatura clássica, Greenaway agrega elementos reconstrutores e ressignificativos. Lesa majestade para uns, produção engenhosa e atual para tantos outros que são agraciados por uma narrativa multimidiática que transforma o produto fílmico em deleite para todos os sentidos físicos e em gozo para a inteligência do público educado, ou a se educar.
Se a narrativa clássica estava montada no eixo da sucessão de fatos na modalidade linearizada, o filme faz farto uso do que Sérguei M. Eisenstein (1969), em seu O princípio cinematográfico e o ideograma, chamou de montagem vertical, ou montagem em profundidade, ou, ainda, montagem polifônica (em concepção mais moderna). O diretor e teórico sobre o cinema, em consonância com os princípios teóricos da literatura de Roman Jakobson, atenta para o fato básico de a narrativa fílmica ser dada pela montagem, processo pelo qual dois campos semânticos justapostos se imbricam e criam uma terceira dimensão de sentido, situação esta semelhante ao da metáfora e da metonímia, figuras da retórica literária.
Esse procedimento acontece no nível microscópico da construção do plano e da seqüência, conceitos vistos aqui na perspectiva de Jacques Aumont (2001). Este procedimento seria o motor propulsor da narrativa, como Eisenstein comenta:

Então, montagem é conflito. Como a base de toda arte é conflito (uma transformação imagista do princípio dialético). O plano surge como a célula da montagem e, daí, deve ser também considerado através do ponto de vista do conflito. O conflito dentro do plano é a montagem em potencial, no desenvolver de sua intensidade, fragmentando a gaiola quadrilátera do mesmo plano e fazendo eclodir seu conflito através de impulsos da montagem entre as partes da montagem. (1969, p. 108)


Greenaway segue de perto essa montagem chamada de montagem intelectual que, por sua vez, exige a presença de um espectador intelectual que compreende o jogo e a produção de sentido que daí decorre. Caso natural, quando se trata de narrativas dialéticas que partem de uma situação conflituosa para o estabelecimento de uma nova situação, na qual, de modo exemplar, os problemas já tenham sido solucionados ou mais controlados, permitindo a vida seguir seu curso sem sérios atropelos.
No filme em questão, porém, a montagem em profundidade não fica apenas no campo do enunciado. Por exemplo, na seqüência inicial, in medias in res, acompanhamos Próspero ordenar que Ariel faça a tempestade, cause o naufrágio e traga os inimigos à ilha. Nesse núcleo accional, vemos simultaneamente Próspero em sua piscina, articulando e executando o plano de vingança; vemos a embarcação ser surrada pela tempestade; seguimos ainda os espíritos da ilha em ação; os náufragos sendo resgatados; e, com valor simbólico de peso considerável, podemos ler o texto manuscritado da peça de Shakespeare sobreposto às várias interfaces que se amalgamam na película.
Tal procedimento tecnológico, produzido com o auxílio de variadas gamas de filtros, softwares gráficos e ambientes computacionais multifuncionais, como nos lembram Yvana Fechine (2003), criam algo mais do que o sentido natural ocasionado pela montagem em profundidade, proposto por Eisenstein. Planos são produzidos, nos quais vemos não apenas um signo de linguagem específica em interação com signos da mesma linguagem. Tem-se, aí, a interação de enunciados completos veiculados por meios diferentes.
Como se colocou acima, na longa primeira seqüência, o diretor já nos fala ao que veio, pois imagem, escrita, cores, coreografia, escultura, pintura, entre outros, estão juntos para criar uma espécie de roteirização hipermidiática, conceito explicado por Gosciola (2003). O receptor intelectual, proposto por Eisenstein, tem acesso ao compósito artístico em toda a sua simultaneidade e, se quiser, pode entrar no conjunto por qualquer dos vieses semióticos possíveis. E as possibilidades de escolha de percursos do roteiro são grandes, já que a criatividade da aparelhagem hipermidiática oferece veículos ágeis e de acessibilidade convidativa ao produtor e ao consumidor.
O produto artístico de Greenaway é, pois, um encontro criativo e saudável com o produto artístico de Shakespeare. O terreno antigo é invadido, reproduzido, mas com o cuidado, quase que romântico, de se preservar sua positividade, no que diz respeito à valiosa mensagem humanista que ele transmite através dos séculos. Prova disso é a seqüência posterior à confirmação do noivado entre Fernando e Miranda, na qual temos o que seria uma montagem pura, nos dizeres de Eisenstein (1969). Nesta situação, temos a simplicidade do Protagonista que sai da multiplicidade intersemiótica a sua volta, a cortina desce as suas costas, e ele declama o que seria o sentido central da narrativa, tanto escrita quanto fílmica:


Próspero:

Estais a olhar, meu filho, de uma maneira estranha; pareceis aterrados; alegrai-vos senhor. Os nossos divertimentos estão concluídos. Estes nossos atores, como vos disse, ora, assim como a ilusória realidade de tal visão se desvaneceu, hão de do mesmo modo esvair-se as torres que se elevam até às nuvens, os palácios soberbos, os templos majestosos e até o próprio globo com quanto nele existe. Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está encerrada entre dois sonos. Senhor, estou um pouco triste; perdoai à minha fraqueza; o meu cansado cérebro está perturbado; não vos inquieteis com esta minha enfermidade; se quereis, entrai para a minha gruta e descansai: eu darei uma volta ou duas para acalmar o meu perturbado espírito. (1942, p. 477, o grifo é nosso)


A montagem pura, conceituada por Eisenstein, é uma situação singular nesse contexto de interpenetração semiótica. Ela não diminui o potencial do arsenal tecnológico do texto intersemiótico quando ressalta uma mensagem que poderia estar em qualquer outro suporte. O texto clássico e o hipertexto contemporâneo criam, pois, o lugar que representa as possibilidades deste código de base, que é a narrativa.
Com estas reflexões breves, pensamos contribuir para um posicionamento mais flexível do pesquisador frente a várias mídias que existem em fluxo de purezas e imbricações nos constantes processos comunicacionais nos quais estamos imersos. A fusão da imagem com a palavra, e com tantos outros signos, segue seu curso, sem que sejamos obrigados a julgar tal processo sob ótica moralista ou ética quanto à linguagem usada e, sim, a priori, que nos posicionemos perante a estruturalidade e a funcionalidade de um meio que, ao contrário da pretensa substancialização, concentra-se para se tornar diáfano no instante seguinte.