segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Identidade e melancolia: onde está a criança que vive no adulto?


Gaston Bachelard, em seu ensaio Os devaneios voltados para a infância, fala-nos que permanece um núcleo de infância na alma humana, “uma infância imóvel, mas sempre viva, fora da história, oculta para os outros, disfarçada em história quando a contamos, mas que só tem um ser real nos seus instantes de iluminação” (1988, p. 94). Assim, acontecimentos e valores, que emolduram nosso presente de pessoas adultas, manteriam contato com aquela fase na qual podíamos assumir variadas facetas comportamentais, antes dos fragmentos existenciais serem forçados a ficar coesos e exclusivos em torno de uma forma singular, que pensamos ser nossa pessoalidade única.
No correr da vida adulta, ficamos no dever de manter e assegurar um núcleo duro de subjetividade, que atue de modo esperado e produtivo pelas relações consensuais de nosso meio social. No entanto, de vez em quando, somos tomados por um sentimento de solidão e de inoperância, traduzidos por um estado de melancolia, diante dos empreendimentos esperados e, inconscientemente, voltamos aos primeiros movimentos de relações dos nossos romances familiares, nos quais as características infantis dominavam nossos impulsos e faziam frente às necessidades de enquadramento no mundo adulto.
No romance familiar, podemos acompanhar como foram nossas primeiras relações com os adultos a nossa volta. Essa fase contém relações comportamentais correspondentes ao que Freud (1996) denominou por Complexo de Édipo.
1 Nela, a criança aprenderia a conter seus instintos, emoções e desejos ambíguos e anti-sociais e enquadrar-se-ia nos parâmetros de fatos, pessoas e autoridades exemplares a sua volta. A partir da contensão de desejos, outrora multidirecionados, a imagem do Ego equilibrado seria o farol que direcionaria o sujeito por toda sua vida. O afastamento de si mesmo, como única fonte de prazer; o afastamento da mãe, como objeto de gozo; a identificação em relação ao pai, no caso do menino, como fonte de procedimento institucional, são os componentes para o imaginário configurar o Ego em corpo e pessoalidade individuais, como Lacan (1994, p. 68) fala-nos sobre o estágio do espelho.
A ilusão da imagem constituída pelo estágio do espelho está, de certa forma, no nível do complexo de Édipo resolvido no período da infância. Ou seja, a natural ambigüidade afetiva daria espaço para toda uma afetividade com investimentos sentimentais e intelectuais exclusivos e permitidos. Os instintos agressivos e narcisistas, segundo a ótica do Complexo de Édipo realizado com sucesso, são recalcados e o amor e gratidão, para com os adultos próximos e suas instituições, são fortalecidos.
Por que, então, o adulto retorna, de modo usual, ao complexo universo infantil quando o sentimento de melancolia surge e compromete sua funcionalidade como sujeito maduro? Melanie Klein (1996), em seus estudos sobre a psique infantil, conta-nos que o sentimento de melancolia, de solidão e de insuficiência demonstram os embates entre o princípio da realidade e o princípio do prazer que ainda vigoram no adulto.
2 Uma espécie de movimento contínuo desse embate faz com o que adulto retorne ao período infantil, no qual a identificação com os valores positivos, consolidaria o Ego à sombra do Superego e subordinaria as ações do Id ao senso de realidade. Repetir-se-ia, pois, o estágio de acomodação psíquica que descortinaria o amadurecimento pessoal.
Tal quadro dar-se-ia dessa forma, se o processo de exclusividade egóica realmente aplacasse o caráter proteiforme da personalidade humana. Porém, parece que é a um estágio de descompressão de realidade que o adulto melancólico pretende chegar, quando a partir da melancolia e solidão de sua maturidade, faz a volta à infância. Na esteira do pensamento pós-freudiano, podemos acompanhar como os sacrifícios para apaziguar as diretrizes de um Superego voraz não dão cabo das fantasias, afecções e movimentos em livre expansão, típicos do universo infantil e que também podem ter utilidade no mundo adulto.
Deleuze e Guattari (1966), seguindo as aberturas dadas à constituição do sujeito pelo lacanismo, que supera o estágio de integralização da miragem egóica especular, escreverão seu anti-Édipo, contrariando a interdição parental que o Édipo freudiano elaboraria para introduzir a criança nos meandros da civilização. Para esses filósofos neo-freudianos, a subjetividade madura teria sua compleição semelhante àquela infantil. Compreendendo por infância o período que não cessaria em uma determinada idade e, sim, continuaria com sua maleabilidade constitutiva e funcional por toda a vida do sujeito.
A constituição da subjetividade dar-se-ia, via sínteses conjuntivas inclusivas (DELEUZE e GUATTARI, 1966, p. 80), e não como a visão positivista de formação postula, via síntese conjuntiva exclusiva. Esta segunda modalidade implicaria no fato de o sujeito tornar-se uma subjetividade única, individual; ou seja, um repertório fechado de comportamentos e afecções, garantido por previsíveis identificações, controladas institucionalmente, com outros sujeitos. O menino identificar-se-ia com o pai e a menina, por sua vez, com a mãe, e seus afetos seriam ordenados e canalizados para ações sublimadas que assegurariam a continuidade de estruturas civilizatórias, como a ciência, a religião e a arte.
Quanto à constituição de síntese inclusiva da personalidade, teríamos, segundo Deleuze e Guattari, a personalidade disposta em
[S]ingularidades vindas de todos os lados [que entram no fluxo da subjetividade multiforme], agentes de produção evanescentes. É a disjunção livre; as posições diferenciais subsistem e até adquirem um valor livre, mas estão todas ocupadas por um sujeito sem rosto e transposicional. (1966, p. 80-81).
Poderíamos, pois, perceber a melancolia do adulto, e a conseqüente evasão espaço-temporal para a infância, como sinais de um redimensionamento de nossas crenças quanto à fixidez de um quadro de evolução. A melancolia, sensação de perda de algo que não se sabe ao certo o que é, indicaria um ponto de convívio natural entre princípio do real e princípio do prazer. A criança não estaria inativa em algum recôndito secreto do adulto e, sim, estaria agindo plenamente no adulto, possibilitando o livre curso de fantasias e ambigüidades afetivas que são necessárias para sua real compleição de sujeito transposicional.
A criança viva, que não pode ser morta sem gerar o colapso final da psique, recoloca o sujeito adulto no limiar de variadas escolhas que não trarão um produto final, como seria aquele da fase de maturidade pessoal definitiva. Assim, um entrecruzar de infantilidade e de comportamento adulto seria o campo de respostas para o sinal de alerta que, por vezes, soa no adulto envolto pela melancolia e pelo sentimento de solidão.
O sentimento de melancolia e de solidão do adulto, mais do que Klein nos indica ser, aponta para algo mais complexo do que subjetividades adultas culpadas, que estão em processo de reparação de objetos amados que são maculados e feridos no decorrer de suas vidas. Melancolia e solidão aproximam-se, ao contrário, de estados positivos que indicam ao adulto que há um excesso de peso, sobreposições demasiadas sobre o campo libertário, tão próprio do que seria a infância plena e distante dos protocolos culturais instaurados pelo regime de culpa, que ocasionam a ordem e diminuem a espontaneidade e a possibilidade do sujeito testar, em sua pele, subjetividades variadas e emoções diversificadas.
Tal como Bachelard nos orienta, melancolia, solidão e devaneios formam condições nas quais podemos ver novamente o clarão da eternidade baixando sobre a beleza do mundo. O mundo da infância, liberto no mundo do adulto que passa a ser enriquecido por contradições, ambigüidades, vontades de ações ilimitadas e, até mesmo, fantasias de onipotência criativa.
Nesse contexto de desligamento, que o estado de infância possibilita no mundo adulto, não teríamos a necessidade de reunir, sob uma série de coerções, todos os nomes e pessoas inventados e vivenciados, em nosso fórum íntimo, em uma unidade positivista de personalidade previsível. O controle de algum rei, célere em nos avisar que a hora de diversão, peraltices e prazeres autotélicos acabou, atenuaria-se, e a criança poderia andar de mãos dadas com o adulto.
Autor
1 Doutor
em Literatura Brasileira e Docente da Faculdade de Letras da UFG.
Notas
1 Os
textos, em que melhor tal complexo pode ser compreendido, bem como a questão do luto e da melacolia e do romance familiar, são: Romances Familiares (1996), texto quase programático de exposição da dinâmica do Édipo no plano ontogenético; Totem e tabu (1996), texto metapsicológico em que se aborda o complexo sob forma ontogenética e filogenética; O mal estar da civilização (1996), outro texto metapsicológico no qual discute-se os sacrifícios que o princípio do prazer, reprimido e/ou sublimado pela equilibração edipiana, faz em prol do princípio de realidade; bem como em Moisés e o monoteísmo (1996), texto também metapsicológico, no qual Freud afirma a necessidade da abdicação da satisfação dos instintos para a consolidação da civilização, mesmo que o preço disso seja uma irremediável ativação repressiva sobre o material reprimido.
2 Klein
diverge de Freud por analisar o complexo de Édipo já na primeira infância. Para Freud, esse processo de identificação só se estabelece quando há ação simbólica de elementos coercitivos advindos do Superego, o que ocorreria no fim da primeira infância e no fim da segunda infância, situação na qual o erotismo primário é direcionado para os mecanismos de sublimação.

Contribuições da literatura do devaneio para o conceito de juventude


O tema da juventude, apesar de sua grande importância sócio-cultural, aparece bem demarcado nas teorias do desenvolvimento da personalidade. Nos clássicos manuais de orientação psicogenética, dentre outras, acompanhamos uma teleologia rígida na integração psicofisiológica do ser humano. Fases, quase que exclusivamente evolutivas, são dispostas como que em uma hierarquização fixa que não possibilita o aparecimento de variáveis determinantes fora do seu contexto de expectativa.
Desta forma, auxiliados por Flavio F. D’Andrea (1989), vemos como o pequeno ser humano passa pela fase oral, aquela do nascimento e da fatal separação materna para o estabelecimento pragmático do desenvolvimento psicossocial; a fase anal, na qual as sementes do superego já se enraízam no psiquismo; a fase fálica, na qual o grande interdito do Édipo mostra-se como um delimitador de ações inter-relacionais; a fase da latência, onde o superego consolidaria seu papel de timão civilizatório para a pequena fera que recebe, de modo arbitrário, o passaporte para fazer parte das relações sócio-culturais complexas.
O processo continuaria com a adolescência, período que equivaleria às modificações intrapsíquicas que acompanham as rápidas mudanças biotípicas e, também, onde teríamos o espaço para uma formação da identidade do sujeito; a fase da maturidade, que engloba a dimensão do adulto-jovem e do adulto de meia idade, que já é capaz de ser considerado como um sujeito competente para assumir determinados lugares sociais; e, enfim, a velhice, fase em que capacidades psicofisiológicas desaceleram-se e o organismo humano encaminhar-se-ia para a situação do descanso inorgânico.
A fase propriamente da juventude, como o senso clínico, bem como grande parte do senso comum estaria no que se convencionou denominar por pós-puberdade. Esta etapa estaria quantificada entre os quinze e os vinte anos do sujeito,
isto é, no período que segue a puberdade, o adolescente de nossa cultura, para integrar-se definitivamente no mundo dos adultos precisa enfrentar o problema vocacional, emancipar-se da família, desenvolver relações satisfatórias com o sexo oposto e integrar sua personalidade, cristalizando uma identidade pessoal (D’Andrea:1989, p. 88).
Poucas linhas de qualificações complexas para um tempo infinitamente pequeno. Integração, emancipação, satisfação e cristalização parecem falas oraculares, proferidas por uma instância inumana. Caem, pois, com peso implacável e insustentável sob a cabeça do sujeito que passaria por tal etapa e, nos seus planos de vida, ambicionaria tão somente encontrar a leveza dos prazeres que a vida poderia propiciar.
O pós-púbere, com um pé na adolescência e outro na dimensão do adulto-jovem, seria obrigado, conscientemente ou não, a chegar a um ponto de evolução, em que variados trabalhos de luto - como o luto pelo corpo infanto-adolescente, o luto pela quebra da onipotência dos pais, o luto pelas maravilhas criadas pela fantasia desenfreada que era possível nas fases anteriores - são forçados a atingir a solução conclusiva, sem nenhuma possibilidade de fiança sócio-cultural, como nos ensina Eric Erikson (1987).
Com tanta exigência para se conseguir o passaporte para a maturidade da integridade pessoal, percebemos, com relativa facilidade, como tais demarcações evolutivas são envoltas mais pelo caráter ideal do fenômeno, que pela situação empírica, contexto no qual realmente a vida humana dá-se em seu devir proteiforme.
Este caráter de constituição proteiforme vai ao encontro do pensamento de Gaston Bachelard (1988), quando o filósofo-poeta discorre sobre o devaneio, que seria aquele atributo psíquico que possibilita ao sujeito a evasão temporal e espacial do universo pragmático e, conseqüentemente cerceador, que a realidade na qual está inserido impõe como mecanismo de equilíbrio grupal. Neste enfoque, as fases evolutivas não estariam presas a uma hierarquia teleológica inflexível. Pelo contrário, se as características de tais etapas podem ser mapeadas, elas o são sempre na qualidade de pontos de intercâmbios e de simbioses não completamente detectados pela lógica racional.
Bachelard ensina-nos que o devaneio funcionaria como uma válvula de escape contra os excessos dos mecanismos repressivos do princípio da realidade, conceito originalmente sistematizado por Freud (1996b), em seu ensaio metapsicológico O mal estar na civilização. Assim, nos momentos de maior tensão, ocasionados pelas exigências do mundo adulto, que é integrado às regras do bom comportamento social, o devaneio criaria uma espécie de solidão criativa. Vejamos a reflexão nas palavras de Bachelard:
Quando, na solidão, sonhando mais longamente, vamos para longe do presente reviver os tempos da primeira vida, vários rostos de criança e adolescentes vêm ao nosso encontro. Fomos muitos na vida ensaiada, na vida primitiva. Somente pela narração dos outros é que conhecemos a nossa unidade. No fio de nossa história contada pelos outros, acabamos, ano após ano, por parecer-nos com nós mesmos. Reunimos todos os nossos seres em torno da unidade do nosso nome (Bachelard, 1988, p. 93).
Uma das maiores exigências da pós-puberdade, e início da juventude, seria a de concatenar-se os elementos que conformariam a identidade do sujeito. Esta conformação, de acordo com a evolução teleológica e de fases fixas, ocasionaria uma espécie de síntese conjuntiva exclusiva; ou seja, via identificação, no sentido que Freud (1996b) dá ao termo, com os outros sujeitos, o sujeito em formação projetaria e introjetaria comportamentos que, juntos em sua egoicidade, criariam a personalidade única, exclusiva e capacitada a assumir um papel social esperado pelo seu meio, como acompanhamos em Arminda Aberastury e Maurício Knobel (1989).
Não é desse sujeito que Bachelard está a nos falar. Se síntese pessoal realmente acontece no contato inter-pessoal, ela não excluiria, com o auxílio do devaneio e de outros princípios psíquicos, as possibilidades de assumência de uma variada gama de comportamentos, mesmo quando em situação de oscilações de personalidades contraditórias. Desta forma, a integração da identidade, cartão de entrada para o mundo adulto, estaria mais no âmbito do que se convencionou denominar por síntese conjuntiva inclusiva, como acompanhamos na poética psicanálise filosófica de Deleuze e Guattari (1966).
Abrir-se-ia, assim, um novo horizonte para acompanharmos como pode se dar, de modo mais libertário e produtivo, o processo de entrada do sujeito no mundo adulto. Com o devaneio, proposto pela visão poética de Bachelard, e com a possibilidade da identidade ser conformada por fragmentos heterogêneos, na proposta de Deleuze e Guattari. Aquelas exigências psicossociais, desta fase de transição, estariam atenuadas, e o amadurecimento do sujeito seguiria o seu curso, que, por vezes, assemelha-se a uma retilínea evolução e, por vezes, mostra-se como traçado errático, no qual as fases imbricam-se umas nas outras, a ponto de não podermos percebê-las nos elementos interseccionados.
O devaneio e a noção da síntese conjuntiva inclusiva mudam nossa percepção dogmática sobre a evolução da personalidade humana. As fases desta evolução são redimensionadas em situações que não de configuram pela exclusão, e sim pela inclusão de material psíquico heterogêneo em complexas situações de intersecção que capacitam o sujeito a perceber-se, a perceber o seu meio natural e os outros sujeitos, de modo mais dinâmico e mais próximo do que, de fato, a vida se apresenta em seu fluir realístico e prazeroso. Daí, talvez, juventude fosse mais um dos vastos e incompletos estados da subjetividade humana.