domingo, 27 de janeiro de 2008

Entre perdas e ganhos: luto e melancolia ( I )




Curto muito a poesia de Charles Baudelaire. Sua arte de natureza ex-cêntrica e de espírito decandentista, do qual sou próximo, seduziu-me desde a adolescência. Lembro-me bem de quando eu lia em voz alta um dos meus poemas preferidos que aqui coloco na íntegra:


SPLEEN


Sou como um rei sombrio de um país chuvoso,

Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,

Que, desprezando do vassalo a cortesia,

Entre seus cães e outros bichos se entedia.

Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,

Nem seu povo a morrer defronte do balcão.

Do jogral favorito a estrofe irreverente,

Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.

Em tumba se transforma o seu florido leito,

E as aias, que acham todo príncipe perfeito,

Não sabem mais que traje erótico vestir,

Para fazer este esqueleto enfim sorrir.

O sábio que ouro lhe fabrica desconhece

Como extirpar-lhe ao ser a parte que apodrece,

E nem nos tais banhos de sangue dos romanos,

De que se lembram na velhice os soberanos,

Pôde dar vida a esta carcaça, onde, em filetes,

Em vez de sangue flui a verde água do Letes.



Eu pensava que o sentido do poema refletia uma de minhas sensações mais freqüentes que era a de estar cercado por uma infinidade de pessoas, mas, ao mesmo tempo, ter a sensação de estar sozinho ou imcompleto. De possuir uma situação repleta de benefícios familiares, sociais e culturais, mas, paradoxalmente, também sentir que algo importante para minha integridade estava faltando.

Minha adolescência deu lugar à juventude, essa, à maturidade (mesmo que oscilante) e ainda hoje, sinto falta de algo que não compreendo o que seja. Por mais que eu tentasse historicizar os fatos e situações vividos, não encontrava nenhum acontecimento que me ttivesse dado insatisfação singular, que eu tivesse perdido e que dele eu sentisse conscientemente falta. Com grande frequência, ainda hoje tenho o hábito de me sentir como o sombrio rei baudelaireano, a quem nenhum sacríficio é capaz de diminuir a realidade do sentimento de perda, de vazio, da misteriosa sensação de incompletude.

Eu teria razões, portanto, para me vestir de preto, desligar-me da realidade na qual estou inserto, cultuar a morte, vagar por cemitérios soturnos (o que de vez em quando realmente faço, mas durante o dia para fotografar arte tumular) e isolar-me na minha ilha-lenitivo do narcisismo egóico.

Apesar de cultivar um relativo isolamento social, sou afeito aos variados enfrentamentos que a vida me proporciona. Saio-me bem de alguns, saio-me mal de tantos outros e vou levando o barco em uma dinâmica até instigante e interessante para os padrões de normalidade de minha cultura. No entanto, vez ou outra dou por mim à beira do familiar e companheiro vazio que me acompanha por anos e anos.

Por vezes penso que essas horas são necessárias, como Baudelaire prenunciou, ao observar os excessos da industriação, os avanços tecnológicos, a velocidade e superficiliade das relações sociais que sua época começava a viver. Em períodos de alta produtividade pragmática, em uma sociedade que nos exige atenção e trabalho adequados a produção de um elevado quantum de bens, nada seria mais natural e positivo do que um desligamento para nosso espírito repousar ou avaliar a qualidade e funcionalidade da quantidade de bens produzidos. Esse spleen seria o repouso em relação à vida cotidiana e uma imersão em um existência íntima repleta de novas possibilidades e/ou de jogos existenciais que não objetivam atigir nenhuma meta de produtividade pragmática. Fantasia, imaginação, delírios, sentimentos vastos e sensações imperfeitas, tudo isso faria parte do trabalho de spleen. Ou seja, um desligamento saudável e necessário.
O spleen seria então um desligamento feliz. Químico ou natural, pois sua natureza pode ser induzida por substâncias artificais, mas também pelas ocorrências do cotidiano que sensibilizam de modo peculiar o nosso psiquismo. Gaston Bachelard o chamaria de devaneio e traria a ele uma gama de qualidades metafísicas e humanistas.

No entanto, minhas horas de spleen foram e são ainda acometidas por uma quantidade significativa de angústia e percebo que a proximidade deste estado de ócio produtivo, e minha imersão nele, parece acender alguma luz. Não sei se de cautela ou de perigo imediato.

A recorrência deste contexto é bem localizada quando sei que perdi algo em minha vida. Essa perda pode ser de abrangência bem variada, podendo ser a perda de um ente querido, de um objetivo de vida, de uma crença, de uma situação que considero positiva, de um sentimento valorizado, de uma fantasia. Enfim, aquele leque de perdas que seria bastante natural enfretarmos no curso de nossas vidas e que não ocasionaria transtornos maiores em subjetividades calejadas pelas exigências impostas por modelos de comportamentos considerados normais.

Essa longa introdução, ou como minha avó dizia: essa comida do mingau pelas beiradas, serve para afirmar que meu spleen transforma-se facilmente em luto, que, por sua vez, transforma-se facilmente em melancolia. Não uma melancolia que atinja o nível patológico, mas sim aquela que me retira significativas possibilidades de investimentos energéticos.

Gosto da metáfora que explica a vida psíquica como sendo um organismo gerador e consumidor de energia, um corpo energético. Tal como máquinas, existimos nessa dinâmica de produzir condições para continuarmos vivos e, ad infinitum (ou até a morte chegar), manter a quantidade e qualidade da energia conquistada, além de operacionar novas condições para conquistas de mais e novas energias.

Aparentemente meu sentimento recorrente de vazio existencial corresponderia a uma pane sistêmica, no lugar de funcionar como uma parada para reparação da máquina. Em outras palavras, não consigo trabalhar bem com situações de perda. O lance de sacudir a poeira e procurar criar novos caminhos a partir dos percursos alternativos parece me exigir uma demanda excessiva de energias.

Com o objetivo de compreender melhor esse quadro, que mais pessoal, acredito ser de abrangência bem maior do que penso, reli "Luto e Melancolia", de Sigmund Freud.
Assim como sou baudelairiano de carteirinha, venho lendo a teoria freudiana ha anos e, muito vagarosamente, sinto que compreendo aonde esse pensador desejava chegar.

O sentimento de luto é natural ao ser humano. A perda do objeto do desejo, aquele no qual depositamos nossa energia de vida (a libido), exige que refaçamos os percursos. Essa reorganização de vida exige um gasto energético variável, de acordo com a formação psíquica do sujeito. Quanto mais movido por uma libido centrípeta, sua reação o levará rapidamente para outras situações que lhe permitirão a substituição do objeto amado que foi perdido. Quanto mais movido por uma libido centrífuga, esse desinvestimento libidinoso ocorrerá com angustiante lentidão, a ponto de comprometer a produtividade sistêmica do corpo maquínico.

Soma-se a estas diferentes ocorrências, a natureza consciente ou inconsciente do processo. Se o caso é historicizável, procedimentos consensuais dos lugares sociais ocupados pelo sujeito serão de grande valia para a natural substituição do objeto perdido. No entanto, nem todas as estórias e histórias que contamos sobre nós e sobre os outros são confiáveis, dignas, portanto, de repertório educativo para a criação ou consolidação de comportamentos válidos no futuro.
A perda pode ser esquecida, minimizada, deslocada ou entrar para a listas das inúmeras perdas que sofremos na vida. A perda também, no entanto, pode somar-se, como que erraticamente, a outros núcleos afetivos que fazem nossa personalidade ser algo além do que pensamos que ela seja. Nesse ponto, o de elaboração de uma rede de afetos criados por situações de perdas e outras situações de natureza heterogênea, a coisa complica muito. Sinto, então, que é preciso fazer uma distinção maior daqueles elementos que idenficariam o spleen, o devaneio, o luto e a melancolia.

Quero tratar com maior precisão sobre tais situações na próxima blogagem.