domingo, 4 de maio de 2008

Um percurso da sensibilidade artística em "No Caminho de Swann", de Marcel Proust



A narrativa No Caminho de Swann, de Marcel Proust, abre a grande aventura literária que é a obra Em busca do tempo perdido. Junto a outros seis volumes contínuos, esta narrativa estrutura-se como uma sinfonia, em que no primeiro movimento somos apresentados aos principais temas que serão minuciosamente desenvolvidos nos demais volumes seguintes.
O narrador-protagonista, no primeiro volume desse exercício estético e memorialista, encontra-se na fase adulta e imerge na recordação de sua infância e adolescência vividas na pequena vila de Combray. Experiências de vida intensas são envoltas pelas relações familiares com seus pais, avós, tia-avós e a comunidade de uma cidadezinha que funciona como contraponto para a agitada Paris do final do séc. XIX. O pequeno Marcel nos expressará seu amor por sua mãe e as investidas de seu pai para que ele assumisse um comportamento adulto, ao mesmo tempo em que seremos também apresentados ao seu universo de formação artística.
Em um segundo momento, seremos levados à vida de Swann, um dos vizinhos e amigos da família, em suas investidas amorosas, em suas relações conturbadas na aristocrática sociedade parisiense e, mais importante para nossos interesses, ao seu comportamento diante das práticas e interesses artísticos de seu meio e época. Interessa-nos de perto o primeiro momento da narrativa proustiana, aquele que diz respeito a como o pequeno Marcel entra em contato com o mundo artístico, com a pintura, a escultura, a música, a arquitetura e, em especial, com a literatura e as concepções de arte advindas desse processo.
Em Combray, é peculiar e exemplar o convívio que Marcel tem com sua avó materna, pessoa de apurada sensibilidade para com a vida e para com o mundo cultural, situação essa que influenciará o pequeno garoto durante toda sua vida. Deste contato, vemos surgir as idéias sobre o fenômeno artístico que mais tarde, nos volumes subseqüentes, serão desenvolvidas de modo mais sistemático. Nesse primeiro momento, os pensamentos do garoto estarão envoltos ainda por aquelas sensações, sentimentos e surpresas típicos dessa fase de descoberta e de formação.
Um dos primeiros pontos da percepção e de compreensão infantil e juvenil de Marcel vem da prática que a avó materna tinha ao presentear as pessoas. Sua exigência salutar era a de que o presente tivesse um valor estético. Nada de utilitarismos poderia comprometer o que era comprado e oferecido, mesmo que isso dificultasse a vida das pessoas que recebiam tais presentes. Vejamos como este comportamento peculiar, pois acontecia em uma época na qual a produção em série já invadia o campo do artefacto artístico e já se fazia sentir o que, mais a frente, viria a se chamar de contexto de indústria cultural, causava na impressão do neto de índole bastante observadora. A passagem é um tanto longa, mas merece ser destacada em sua extensão natural, pois trata de uma lembrança que influenciará o comportamento do artista em formação:

Na verdade, jamais se resignava [ a avó materna ] a comprar qualquer objeto de que não se pudesse tirar algum proveito intelectual e sobretudo o que nos proporcionam as coisas belas, ensinando-nos a buscar deleite em outra parte que não nas satisfações do bem estar e da vaidade. Até quando tinha de fazer algum presente chamado útil, quando tinha de dar uma poltrona, um serviço de mesa, uma bengala, procurava-os ‘antigos’, como se, havendo seu longo desuso apagado em tais coisas o caráter de utilidade, parecessem antes destinadas a contar a vida dos homens de outrora que a atender às necessidades de nossa vida atual. Gostaria que eu tivesse no quarto fotografias dos mais belos monumentos ou paisagens. Mas, no momento de fazer a compra, e embora a coisa representada tivesse um valor estético, achava ela que a vulgaridade, a utilidade, logo reassumiriam seu lugar, pelo processo mecânico de representação, a fotografia. Procurava então um subterfúgio, tentando, senão eliminar de todo a vulgaridade comercial, pelo menos atenuá-la, substituí-la o mais possível pelo que ainda fosse arte, introduzir-lhe como que várias ‘espessuras’ de arte: em vez de fotografias da catedral de Chartres, das fontes de Saint-Cloud, do Vesúvio, informava-se com Swann se algum grande mestre não os havia pintado, e preferia dar-me fotografias da catedral de Chartres por Corot, das fontes de Saint-Cloud por Hubert Robert, do Vesúvio por Turner, o que constituía um grau de arte a mais (PROUST: 1993, p. 44-45).


O narrador-protagonista assegura-nos, seguindo a apresentação dos hábitos da velha senhora, que o fotógrafo, no caso exemplificado, era redimido se aproximasse de uma representação estética do refencial, afastando-se, pois do fenômeno empírico que traria uma condição de inferioridade e de vulgaridade ao que era representado. Em várias circunstâncias, esse hábito ocasionara dissabores no dia-a-dia, como o exemplo do caso no qual Marcel conhecera Veneza através de um desenho que o pintor Ticiano havia feito e que, como é de se esperar de um grande artista, não possuía muitos vínculos com a realidade sentida e expressada.

Caso semelhante repete-se quando acompanhamos a bondosa senhora presentear uma poltrona a um jovem casalzinho, criando uma situação quase cômica, se a natureza idealizadora de sua crença na estética não nos fizesse ficar sérios para refletirmos sobre a delicadeza do gesto. Marcel assim nos diz sobre a situação:

[...] as poltronas oferecidas por ela a um parzinho recente ou a velhos casais e que, à primeira tentativa para se servirem delas, logo desabavam sob o peso de algum dos destinatários. Mas minha avó teria julgado mesquinho preocupar-se muito com a solidez de um móvel onde ainda se distinguiam uma flor, um sorriso, às vezes uma bela imaginação do passado. Até aquilo que nesses móveis correspondia a uma necessidade, como se apresentasse de uma feição a que estávamos desabituados, a encantava como esses antigos modos de dizer em que descobrimos uma metáfora, apagada, em nossa linguagem atual, pelo desgaste do hábito (idem, p. 45).


O narrador-protagonista segue lembrando-se de que também ao presentear com um livro, como os de George Sand que a avó lhe dava, ela os escolhia, de preferência aos outros, porque eles traziam um modo de vida, um linguajar campestre e “cheio de expressão em desuso, convertidas em imagens, e que não se encontravam mais senão no campo” (idem, p. 45). Estas características teriam a função de trazer uma felicidade ao espírito de quem recebia tais obras e criavam uma sensação como que de impossíveis viagens ao tempo, como o narrador constata.
O comportamento da avó, considerado como que excêntrico pelos hábitos europeus do século vinte, além de ser um indicativo de como o garoto tem sua sensibilidade estética educada, serve também de ponto de comparação com aquilo que alguns estetas costumam discutir. Através dessa sensível e exemplar situação criada por Proust, percebemos como o artista realmente é uma antena de sua raça e de sua época, como nos diria Ezra Pound.
Um dos pontos de valoração, do programa estético assistemático da avó do protagonista, envolveria o que se denomina de aura de uma obra de arte. E sobre este assunto, retomamos as clássicas reflexões de Walter Benjamin que disseca sua época, final do séc. XIX e início do séc. XX, no que diz respeito à produção artística, bem como a sua recepção.
Benjamim, em seu ensaio intitulado L‘oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité technique (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), coloca-se frente à produção da fotografia e do cinema, entre outras artes de necessária e rotineira reprodução em série, para discutir o papel da obra de arte de uma época em que a indústria cultural massifica o produto artístico. A prática da multiplicação poderosa de objetivos artísticos dissolveria a alma da obra de arte. Sobre a alma, vista como aura pelo pensador da Escola de Frankfurt, teríamos que se trata de:

une singulière trame d’espace et de temps: l’unique apparition d’un lointain, si proche soit-il. Suivre du regard, un après-midi d’eté, la ligne d’une chaîne de montagne à l’horizon ou une brance qui jette son ombre sur lui, c’est, pour l’homme qui repose, respirer l’aura de ces montagnes ou de cette branche. Cette définition permet d’aperceboir aisément les conditionnements sociaux auxquels est dû le decline actuel de l’aura. Il tient à deux circonstances, étroitement croissants des mouvements de masses (BENJAMIN, 2000, p. 74).

Para Benjamin, com um apuro poético e romântico em sua definição, a aparição única de uma coisa distante acabaria por ser destruída por duas circunstâncias que seriam advindas do fato de tais coisas serem ansiosamente desejadas e, por conseqüência, ficarem mais próximas para a sociedade de massa. A ânsia de possuir o objeto artístico, ou similar, em uma proximidade irredutível, abre caminhos para a necessidade crescente de reprodução, de cópia do que seria a obra original e única.
Há, em nossa cultura, uma necessidade fetichista de possuir o objeto artístico, ou qualquer objeto semelhante que esteja exposto em alguma vitrine. Desta forma, unidade e durabilidade dão lugar à transitoriedade e à repetibilidade. Aconteceria, nesta dinâmica, a destruição do que seria a aura da obra de arte. Como se tivesse lido a passagem de Proust que aqui destacamos, Benjamin concluirá que: “Sortir de son halo l’objet, détruire son aura, c’est la marque d’une perception dont le ‘sens de l identique dans le monde’s’est aiguisé au point que, moyennant la reproduction, elle parvient à standardiser l’unique” (BENJAMIN: 2000, p. 76).
O caráter de unicidade de uma obra seria a sua colocação na esfera da tradição que valoriza ideais e sentidos estabelecidos por um consenso de recepção por parte de um público educado e sofisticado, que são úteis para a continuação de um determinado padrão de vida e repertório de valores. Dessa forma, a flor, o sorriso, a bela imaginação do passado que a avó do pequeno Marcel via na poltrona que presenteava, são características que funcionam como o resgate da aura de um móvel que guarda em si padrões de vida que se valorizam como positivos, e que de tal móvel estetizado deveríamos manter uma distância respeitosa, devido a sua importância passada, e de tal respeito surgiria a fruição pela idéia de que a sensação da lembrança ocasiona a terna felicidade das coisas que alimentam a vida.
Não há dúvidas de que o ideal de aura proposto por Benjamin seja carregado de um posicionamento romântico que deseja assegurar a recepção de um fenômeno artístico por determinada época. Época ideal porque percebe a vida cultural de uma época também considerada ideal. Poderíamos pensar que haveria certa aversão por sentidos que são feitos diacronicamente, sentidos que são feitos por heterogêneos e evolutivos horizontes de expectativas, como nos ensinam os postulados de uma teoria como a da Estética da Recepção. No entanto, a avó do pequeno Marcel e a Escola de Frankfurt parece ter razão em nos avisar sobre os perigos causados por uma desmedida de utilitarismo, de proximidade e de uso descartável que criam uma condição desfavorável a uma compreensão mais crítica e produtiva dos fenômenos artísticos.
Ao lado destas lembranças que dizem respeito ao desenvolvimento de uma sensibilidade via núcleo familiar, podemos acompanhar Marcel vasculhando o que a idílica Combray poderia lhe oferecer de material de percepção e de emoções estéticas. Em seus passeios, descortina-lhe aos olhos ansiosos velhas igrejas com suas arquiteturas seculares, campanários que se erguem e de onde se avista toda a região da vila, tapeçarias que narram sagas antigas, vitrais por onde luzes variadas permitem a substantivação de nuances de cores e formas, músicas feitas por algum vizinho que, inevitavelmente ficarão relegadas ao esquecimento, ruínas de castelos por onde caminharam princesas e cavalheiros franceses, leituras de romances em um jardim similar ao de conto de fadas; enfim, belezas feitas pela criatividade e sensibilidade do homem, ao lado das típicas belezas naturais do lugar, que ainda não foram massificadas pela incessante movimentação fabril e febril da grande cidade.
São várias as ocasiões em que vemos o narrador-protagonista imerso nessas apreciações de uma arte que ainda teima em manter sua aura. É constante a preocupação de Marcel em receber o fato artístico em sua unicidade e durabilidade, como podemos acompanhar no fragmento que nos mostra um dos vários passeios que a família do garoto fazia pela vila, nos quais se contemplava, nesse caso, a arquitetura de uma tradicional igreja:

Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esta justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorregado (PROUST, 1993, p. 66-67).


A tradição sócio-cultural é assegurada pelo respeito considerado ao monumento, situação esta que a avó transmite ao neto e que este perpetua em sua escrita criadora e mantenedora de uma época que já não é integralmente a época do narrador-protagonista que, no ato da escritura, encontra-se no mundo adulto e localizado em uma grande metrópole européia. A singularidade do campanário realmente evoca um passado que se deve perpetuar para assegurar a continuação de uma modalidade de vida desejada e que ainda insiste em viver tocada pelas cordas do coração, com as qualidades da naturalidade e da distinção. E Marcel continua:

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considera pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção (PROUST: 1993, p. 67).


Mesmo que a avó não dispusesse de uma educação formal, sua intuição a levava a acreditar que os grandes e verdadeiros monumentos, assim como a mais ingênua expressão de cultivo de flores, representavam algo de valioso em sua vida, a ponto de representar a integridade desta vida.
O campanário marcava o ritmo da vida da pequena cidade, no entanto quando o narrador faz o relato de como o monumento o tocava, bem como a sua família, não são as características de utilidade as colocadas em relevo. Ressalta-se o valor da tradição que repousa sobre a obra e o palimpsesto de valores que ele adquiriu desde a sua concepção até o último olhar do sujeito que devaneia depositou sobre ele. Mais do que um padrão de ordenação da vida da cidade, o campanário funciona como um repositório dos olhares e atenção flutuante ou tensa das pessoas atingidas por ele.
Marcel confessa, em seguida, que mesmo diante de fatos arquitetônicos mais vistosos e consagrados pela fama internacional, é do campanário de Santo Hilário que ele se lembrará mais e sentir-se-á sensibilizado pelas significações e fruições que tal obra ocasionou e continua a ocasionar em sua vida. O adulto relata que, após numerosas viagens e infindáveis visões de igrejas e de campanários, nada se equipara àquele que está encerrado em seu coração e pode emergir na consciência através da memória. Desta forma, sabemos que as lições da avó foram apreendidas e eternizadas, no sentido de se respeitar e de se assegurar a aura de uma obra de arte. Delicada e nostálgica é a afirmação do adulto, já escritor, nessa retomada de algo que lhe age ainda na alma:

Mas como a memória, por mais gosto com que as executasse, não conseguisse pôr nessas pequenas gravuras [ou as viagens e recepções feitas] o que eu de há muito havia perdido, isto é, o sentimento que nos induz, não a considerar uma coisa como um espetáculo, mas a tê-la como um ser sem equivalente, nenhuma delas domina toda uma parte profunda de minha vida como a lembrança daqueles aspetos do campanário de Combray nas ruas que ficam atrás da igreja (PROUST: 1993, p. 69).


Ao lado da contribuição da avó materna para a formação da sensibilidade artística de Marcel, encontramos o convívio com Bloch, o colega judeu que comunga da mesma avaliação sobre uma das obras que mais toca o adolescente. Trata-se da obra do escritor Bergotte que, em um primeiro momento é percebida em sua dimensão fabular, para em seguida o sensibilizar no plano do discurso, da disposição fabular através da linguagem.
A obra lembra a circunstância de um trecho musical que arrebata o ouvinte, apesar de no início, a consciência não compreender o porquê do arrebatamento. O protagonista transforma-se em um ávido leitor que compara a leitura a um ato de amor que se no começo funciona de modo intuitivo, no seu desdobramento traz uma reflexão sobre o valor da dignidade, da unicidade e do valor tradicional. Após a sensação da fruição sobrevém o campo da reflexão, no qual ficamos sabendo sobre as preocupações em relação ao fazer artístico:


Depois notei as expressões raras, quase arcaicas, que gostava de empregar em certos momentos em que uma onda oculta de harmonia, um prelúdio interior, agitava-lhe o estilo; e era também nesses momentos que ele se punha a falar do ‘sonho vão da vida’, da ‘inesgotável torrente das belas aparências’, do ‘tormento estéril e delicioso de compreender e de amar’, das ‘comoventes efígies que enobrecem para sempre a fachada venerável e encantadora das catedrais’, quando expressava toda uma filosofia nova para mim, com maravilhosas imagens, que pareciam ter elas próprias despertado aquele canto de harpas que então se elevava e a cujo acompanhamento emprestavam qualquer coisa de sublime (PROUST: 1993, p. 95-96).


As alegrias advindas dessa leitura da obra de Bergotte atingiam o âmago de Marcel. De todos os livros se se pudesse reter uma fórmula de uso discursivo, tal uso traria uma espessura e um volume que ampliariam o espírito do leitor adolescente. Ao objeto artístico, vemos a envoltura do sublime que, como comentamos antes, poderia ser traduzido pela nobreza, unicidade e valor digno procurado pela avó do garoto e sistematizado nas reflexões estéticas de Walter Benjamin.
O olhar do narrador, porém, já se desloca para um espaço além da fruição, aquele espaço em que se observa a tecnologia da composição artística no que ela possui de desautomatização da vida pragmática. Exemplos disso são as causas explicitadas do encantamento que podem ser localizadas nas estratégias do romancista lido, tais como o fluxo melódico, as expressões antigas, as expressões muito simples e conhecidas colocadas em evidências, as passagens simples, a brusquidão, o acento quase rouco.
Da natural atenção em relação à estória, acompanhamos a passagem para a preocupação em se analisar o que ocasionaria a presença do sublime. As ondulações da profundidade da escrita tomam o lugar das ondulações de superfície e surge o enlevo com as interrupções da narrativa principal que Bergotte tinha o hábito de compor. Assim, acompanhamos de perto a gênese de uma das estratégias mais habituais do texto do escritor Marcel Proust, quando seu protagonista biografemático destrincha o método de composição de um de seus escritores favoritos:

Nos livros que se seguiram, ante alguma grande verdade, ou o nome de uma catedral famosa, ele [o escritor Bergotte] interrompia a narrativa e, com uma invocação, uma apóstrofe, uma longa prece, dava livre curso àqueles eflúvios que, em suas primeiras obras, permaneciam interiores a sua prosa, revelados unicamente pelas ondulações da superfície, e talvez ainda mais suaves, mais harmoniosos quando assim velados e quando não se poderia indicar de modo preciso onde nascia e onde expirava seu murmúrio. Esses trechos em que ele se comprazia, eram nossos trechos prediletos (PROUST: 1993, p. 97).

A digressão é uma constante nos livros de Bergotte que funcionam como exemplos de desligamento para Marcel. Seria uma forma de tirar a atenção das coisas aparentemente essenciais para as coisas verdadeiramente essenciais. Dessa forma, um procedimento nos é apresentado e sua importância será preciosa para compreendermos como o olhar-escrita do narrador é colocado em funcionamento.
Nesse ponto, de nossas reflexões, vale a pena nos lembrar do gênero no qual essa narrativa de Proust usualmente é colocada. Acompanhamos uma personalidade em formação e essa formação é especializada porque faz parte de um ensino, por vezes assistemático e por vezes sistemático, sobre o fazer artístico, sua teorização e sua avaliação crítica.
Mass (2000, p. 67), acompanhando os processos de constituição do romance de formação, assegura-nos que a questão central dessa forma é a do aperfeiçoamento individual que envolve o conceito de perfectibilité, que já circulava no discurso intelectual da segunda metade do século dezoito, por intermédio de Rousseau. O aperfeiçoamento individual passaria pela “formação integral do indivíduo, harmonizando e equilibrando suas tendências e talentos naturais ao lado de sua formação para a sociedade” (Idem; p. 69).
Mais do que um romance de formação, no entanto, o caso que estudamos enquadra-se na tradição do romance de formação do artista, ou Künstlerroman. Destaca-se, nessa modalidade, o fato de que o narrador-protagonista, já adulto e com sua carreira consolidada, recorda normalmente, em uma narrativa de encaixe que traz o esquema de romance dentro do romance, os esforços em prol da apreensão e do domínio do aparato tecnológico que lhe possibilita a consecução de seus objetivos pertinentes à arte de sua aptidão (SANTANA: 2003, p. 49).
As narrativas do Künstlerroman dizem respeito à direção formativa sistematizada, ou sob outra modalidade de aprendizado, em seus conteúdos e altamente voltada para um objetivo definido de modo apriorístico. Neste tipo de narrativa, as aptidões adquiridas funcionam como poderoso fator de exclusão para outras competências. O artista, no caso do literato, adquirirá as maneiras de compor seu objeto artístico em uma dinâmica de inclusão ilimitada de saberes que é sem precedentes em outra área de produção humana. Tal fato decorre da exigência que o fenômeno artístico possui em relação ao domínio de conhecimentos e saberes heterogêneos, para cumprir de modo satisfatório, uma de suas funções que é a de falar sobre as coisas da vida humana, de modo estetizado.
O Künstlerroman (SANTANA: 2003, p. 51) é um dos gêneros romanescos que mais contribuíram para que o romance moderno e pós-moderno tivesse condições para refletir sua própria composição e funcionalidade. Essa forma específica propicia ao artista os meios para desmascarar convenções improdutivas no campo da produção artística, possibilitando condições para que se reflita sobre e exercite-se, no próprio enunciado literário, novas possibilidades de composição literária.
Esse exercício de compreensão do fazer literário é feito de modo peculiar no Kkünstlerroman de Proust. Tal processo é levado adiante, nesse primeiro volume da Recherche, como se o olhar infantil e adolescente conformassem a compleição do narrador adulto. Para clarear o processo, valemos novamente das reflexões de Walter Benjamin, agora no texto Paris, Capital do séc. XX.
A compleição hibridizada do narrador adulto assemelha-se a condição do flâneur, refletida por Benjamin. Este estudioso nos falará do artista que anda por Paris, exemplo decalcado de Charles Baudelaire, com um olhar de desligamento em relação à vida pragmática. Diante de uma sociedade maquínica, massificada em seus procedimentos e gostos, o artista vagaria por lugares imprevisíveis que funcionam como barricadas ao automatismo imposto pela indústria de bens e pela indústria cultural, em específico. Na cidade, este novo sujeito resistiria à proximidade excessiva e à dessacralização da arte e da vida em geral. Nas palavras de Benjamin:

É o olhar do flâneur cuja forma de vida ainda envolve com um brilho reconciliador a do citadino da grande cidade, logo destinada a não mais conseguir consolação alguma. O flâneur permanece ainda no limiar da grande cidade, como também no limiar da classe burguesa. Nenhuma das duas o subjugou ainda. Não está à vontade nem numa nem outra. Procura um asilo na multidão. [...] A multidão é o véu através do qual a cidade habitada faz um sinal para o flâneur com o olhar, como uma fantasmagoria (2002, p. 699)


Esta “fantasmagoria” pode ser observada no exercício de desligamento, a flânerie, sob a qual funciona o olhar do narrador-personagem de nossa narrativa. Com a lição apreendida de sua avó materna, percebemos a engenhosa disposição na qual este narrador se encontra. É um narrador homodiegético actorial quando vive a época recordada como se ela estivesse ativa em sua vida adulta. Essa condição é percebida quando abrimos este primeiro volume e nos encontramos imersos na fantasmagoria do “despertar do sonhador”.
Nessa seqüência bela e instigante, vemos a estrutura espácio-temporal se desvanecendo na memória do sujeito que não se esforça para colocar ordem nas lembranças que lhe vêm à tona. Rompe-se a distância que seria natural entre o narrador adulto, aquele que seria capaz de ativar e de controlar os fatos e situações lembrados, e o narrador-protagonista em sua infância.
A dinâmica criada entre o narrador homodiegético actorial (aquele que presentifica as vivências passadas) e o narrador homodiegético autorial (aquele que controla fria e racionalmente tais vivências) oferece condições para a flânerie se instalar. A segunda posição narrativa aproxima, de modo racionalizante, o sujeito do objeto artístico, enquanto a primeira causa uma imersão na qual o sujeito sente a condição do sublime em toda a sua intensidade. O viver outra vez e intensamente a vida que passou significa um colocar-se no seio da tradição, da unicidade e integridade do fato que verdadeiramente não se encerrou. Desta forma, a aura do fato estetizado se mantém ativa e ocasiona um encantamento semelhante ao vivenciado pela primeira vez.
A narrativa de Proust, neste primeiro volume, sugere a necessidade de um alheamento do sujeito receptor em relação à obra de arte de qualquer natureza. Esse alheamento traduz-se por pela necessidade de inserir o fenômeno artístico no campo do exercício lúdico e da fruição, contextos estes que minimizam o valor utilitarista do fenômeno e enaltece sua singularidade como produção artística.
Na seqüência inicial deste primeiro volume-sinfonia de Proust, denominada usualmente de “O despertar do sonhador”, Marcel adulto reflete sobre o fato de que “um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos” (PROUST:1993, p. 11). No entanto, o mesmo narrador assegura que essa ordenação pode-se confundir e romper.
Neste momento é que se estabelece na narrativa as infinitas possibilidades de existência que o aparato artístico nos acostumou a observar. Observância desligada, mas não desleixada. Observância feita de devaneios e felicidades que vão sendo acordadas de seu sono provisório, apesar do passar tirânico do tempo que nos obriga, de modo constante a compreender o que se passa no espaço artístico e no espaço da vida.
O aprendizado da sensibilidade estética, desta forma, segue seu curso, despertando as sensações advindas de estadas no campo, de passeios ao lado de rios cheios de nenúfares, de histórias de desgraças amorosas, de cheiros de comidas campesinas que exalam da cozinha, de caminhos de Swann e de caminhos de Guermantes. Sobretudo, são sensações, reflexões e sentimentos sobre a formação do artista que nessa fase são tão intensas, porém diáfanas como o olhar despreocupado e lúdico. Apreensão, expressão e jogo da/na linguagem de gozo, repletos de atenção e de sinceridade, tornam-se peculiares ao olhar e condição infantil e adolescente quando hibridizado pela condição do adulto feita pela flânerie, que refrigera e subjaz sua perspectiva.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Oeuvres III. Trad. do alemão por Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard, 2000.
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do séc. XIX. In: LIMA, Luiz Costa Lima (org.). Teoria da literatura em suas fontes - vol. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: Literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
MASS, Vilma Patrícia. O cânone mínimo: O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana, 15. ed. São Paulo: Globo, 1993.
SANTANA, Jorge Alves. O narrador homodiegético em Infância, O apanhador no campo de centeio, e Tia Júlia e o escrevinhador. 2003. 167p. Tese (Doutorado em Letras – Teoria da Literatura) – Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, 2003.

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