quarta-feira, 18 de junho de 2008

Fernando Pessoa e Win Wenders sob o céu de Lisboa


Gérard Genette, em sua obra Palimpsestes (1982), afirma que todo texto é estabelecido no entrecruzamento com outros textos, sendo, pois, impossível encontrar aquele que seria o texto original ou demarcar o texto como um fenômeno intrínseco. Dessa forma, seu conceito de transtextualidade implica na condição da existência implícita ou explícita de um diálogo entre as produções artísticas. Esta estruturação, baseada no caráter de funcionalidade relacional é indicada para os textos literários; no entanto, podemos estendê-la também às naturais relações que envolvem as adaptações cinematográficas de textos literários para o cinema.


O texto literário de base será o que Genette denomina de hipotexto, enquanto o texto feito sob sua influência, de semiose idêntica ou diferente, será denominado de hipertexto. As possibilidades de hipertextualidade acontecerão em regime de transformação ou de imitação. O primeiro tipo diz respeito a mudanças que ocorrerão nos elementos estruturais e semânticos a ponto de criar situações e condições de inovações na obra derivada. O segundo acompanhará de perto a obra de base, não lhe alterando substancialmente o conjunto de valores temáticos e formais. Soma-se a isto o fato de que tanto a transformação quanto a imitação poderão ocorrer de forma lúdica, satírica ou séria, sendo que tais condições podem hibridizar-se, principalmente nos casos em que a índole da obra artística é dirigida por estéticas modernas e pós-modernas.


Neste quadro de transtextualizacão intersemiótica de contexto transformacional, sério e, ao mesmo tempo, lúdico, observamos o filme do diretor alemão Win Wenders, O céu de Lisboa (1995), desenvolvendo suas estruturas e linhas de sentido sob a influência do projeto heteronímico da poesia de Fernando Pessoa. Mesmo que os elementos da poesia tenham suas peculiaridades de gênero, tais como cunho lírico, ambiências sentimentais, afetivas e pulsionais, eles também podem funcionar como força motivadora para os núcleos accionais prosaicos que estruturam a diegese fílmica.


O hipertexto fílmico oferece-nos a estória de dois alemães, Winter, um engenheiro de som, e Friedrich, um diretor de cinema. Friedrich dirige-se a Lisboa para rodar um filme-documentário sobre essa cidade. Depois de semanas de filmagem, solicita o auxílio do engenheiro de som que prontamente aceita e viaja para Portugal. No entanto, ao chegar, Winter não encontra o amigo no quarto em que ele deveria estar hospedado. No lugar do amigo, encontra rolos de filmes com registros de lugares e de pessoas, além de livros de poesia de Fernando Pessoa na mesa de cabeceira. O mote do filme passa a ser então a procura pelo amigo diretor que desaparecera. Enquanto procura, Winter convive com um grupo de crianças agenciadas pelo diretor para auxiliarem no seu projeto de filmagem, e com o grupo de fados Madredeus, encarregado de fazer a trilha sonora do filme.

Sem pistas do paradeiro do diretor, Winter começa a assistir aos fragmentos de filmes já feitos, além de sair pela cidade para registrar os sons que serão sincronizados às imagens já existentes. Dessa forma, a ação corre em tom de suspense e de metalinguagem. Essa segunda situação diz respeito ao fato de que o engenheiro de som relaciona-se com as crianças, que a pedido do diretor, filmam qualquer coisa que lhes venham à frente, apresentando-lhes a tecnologia dos sons do cinema e as razões pelas quais se produz um filme.


Importa-nos de perto, os períodos nos quais Winter volta para o quarto alugado e, no período de descanso, interessa-se por aqueles livros de poesia. Intrigado, começa a ler as poesias que também foram lidas por Friedrich e, dessa forma, começa a conhecer a Lisboa criada e ficcionalizada por Fernando Pessoa. Nessas horas, a ação principal é suspensa e mergulhamos no projeto heteronímico de Fernando Pessoa, de modo assistemático, que diz respeito de perto às estéticas de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.


Entre o projeto maior da poética pessoana, essas duas poéticas vêem à tona para configurar núcleos temáticos que dizem respeito, predominantemente, à subjetividade lírica produzida pela aparelhagem da tecnologia e da ciência dominantes na época. A primeira ótica preocupa-se em articular meios para assegurar a ingenuidade, a pureza e a liberdade do sujeito inserido em tal contexto. A segunda mostra-se contrária a esta preocupação, porque se alegra em imergir no universo célere, fabril e cosmopolita que a Europa da consolidação industrial propicia.


Winter descobre paulatinamente que pode conhecer a cidade de Lisboa também, e talvez principalmente, através da arte literária que, mais à frente, servirá de suporte para o projeto fílmico em curso. Noite após noite, lê a poesia de Pessoa. Em Alberto Caeiro, aprende que a época moderna adoece o olhar dos homens. Segundo esse heterônimo, o excesso de cultura impede as pessoas de sentirem as coisas, os fenômenos e os fatos como eles seriam verdadeiramente. O que o olhar abrangeria seria o simulacro dos referentes retirados de sua condição existencial natural e representados de modo categórico e ideológico pelos valores sócio-cultuais que moldam a capacidade da visão, bem como a dos demais sentidos. Vejamos um exemplo de como se desenvolve o pensamento poético desse heterônimo de Fernando Pessoa, em um dos poemas básicos de O guardador de rebanhos (1995):


II - O Meu Olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de, vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes eu tinha visto,

E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial

Que tem uma criança se, ao nascer,

Reparasse que nascera deveras...

Sinto-me nascido a cada momento

Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,

Porque o vejo. Mas não penso nele

Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

Em tal poema, podemos acompanhar o programa para a construção de um tratado do olhar humano, bem como de uma estética para o artista construir sua obra. Preocupa-se, aí, com a incapacidade do adulto voltar a olhar as coisas com o saudável e criativo olhar infantil que está ainda imune aos pragmatismos do mundo adulto. É intensa a constatação de que a educação, advinda de uma cultura consensual e massificada, acaba por oferecer modelos de percepção e de compreensão que criam cartografias existenciais limitadas.


O olhar, semelhante ao de um girassol, coloca-se diante do mundo com um desinteresse perante a dimensão cotidiana de produção de bens e de valores utilitaristas. O comportamento que dele surge dirige-se para a inocência da vida que se extasia diante da natureza e dos atos e gestos desinteressados. Dessa forma, cria-se como que uma possibilidade de voltarmos ao Éden, onde, supostamente, as atividades humanas tinham assegurado seu quantum energético para assegurar a continuação da vida.


Alberto Caeiro, como no ensina Lopes e Saraiva (1994), representa segmentos da cultura européia que desconfiam das promessas feitas pela civilização moderna. A ordem, a limpeza e a racionalização, pilares desta civilização, acabam por cobrar um preço muito alto aos homens civilizados. A vida nas grandes cidades, o trabalho fabril, as relações cosmopolitas, a velocidade das ações e produções, tudo isso criaria um entrave para o homem levar uma vida tranqüila, harmoniosa e feliz. A alegoria do olhar sereno e ateleológico do girassol funciona então como um aviso sobre o aprisionamento que as instituições sociais criam para as possíveis formações subjetivas libertárias.


Para Caeiro, considerado como o mestre dos demais heterônimos pessoanos, só o amor desinteressado é capaz de redimir a humanidade. Desta forma, o sujeito é recolocado em uma instância na qual o ego atenua-se em prol de uma vida mais sensorial, contemplativa e menos reativa, no sentido de uma produção contínua que acaba por usurpar as verdadeiras riquezas existenciais. Quando o ego é enfraquecido, pois já não se preocuparia com o acúmulo de riquezas exclusivas, a cooperação com a ecologia pessoal, social e da natureza, atingiria um fluxo saudável e equilibrado.


O outro pólo estético, que também configura uma modalidade de olhar e de existência, é o proposto pela poesia de Álvaro de Campos. Ao contrário do mestre Caeiro, esse heterônimo não se furta a usar os aparatos tecno-culturais que sua época lhe proporciona. Ao contrário disso, sua subjetividade representa todas as conquistas que uma Europa imperial, institucionalizada e tecnicista foi capaz de atingir. Álvaro de campos é a faceta pessoana do futurismo, do desvairismo, do cosmopolitismo pós-moderno, do culto ao progresso, dos sentidos múltiplos e infinitos, das sensações imperfeitas que refletem uma época de grandes avanços tecnológicos e de grandes fracassos sociais e morais, como as duas grandes guerras mundiais que devastaram o espírito da paz entre os povos e seus ideais de igualdade, liberdade e fraternidade.


Das várias fases temáticas de Álvaro de Campos, destaca-se aquela tida como futurista. Na esteira de Marinetti, o heterônimo fará grandes odes de louvação aos valores e feitos do homem moderno do Séc. XX. Destaque há de dado à Ode Triunfal e a Ode Marítima. Na primeira, serão louvadas as conquistas tecnológicas, científicas, mercantilistas e fabris. Na segunda, o caráter proteiforme do homem cosmopolita, a velocidade que recoloca em ordem surrealista as relações de tempo e espaço, e a consolidação dos países e povos em uma aldeia global.


Em relação a um tema de base desse segundo projeto poético, temos o caráter proteiforme da subjetividade, tal como nos poetiza esse fragmento de Ode Marítima (1995):


Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


O “eu-lírico” coloca-se na condição de corpo maquínico que aceita a fraternidade de todas as dinâmicas de máquinas que produzem bens de modo contínuo para necessidades reais e/ou fetichistas. A subjetividade não se vê vitimizada pela tecnologia e ciências que consolidam o progresso irremediável no qual o homem moderno se vê localizado e cartografado. A maleabilidade da técnica fabril é deslocada para o aparato subjetivo que, dessa forma, tem a sua mobilidade plástica assegurada em um contexto nunca antes vivido pela sociedade européia. Homem-máquina gozando seus poderes infinitos de modificar a vida e a natureza de forma acrítica e com intensidade sempre crescente. Nesse quadro, atividades artísticas não possuiriam um diferencial das demais produções maquínicas, já que seu quadro de produção também comportaria elementos de seriação no campo da distribuição e do consumo de massa.


Álvaro de Campos entra em comunhão com sua época compulsiva, produtiva, maquínica. Seus desejos abarcam o objetivo de sentir em sua pele as vidas de todas as pessoas que existiram, que existem e que existirão. Sua necessidade de ação rompe as fronteiras do cosmopolitismo convencional para abranger vivências de épocas e lugares diferentes, criando um palimpsesto surrealista de existência. Ao contrário do isolamento e da desconfiança do mestre Alberto Caeiro, Campos entrega-se genuinamente ao aparato do olhar e do comportamento moldado por todas as territorializações possíveis da cartografia nervosa e intensa de sua época.

Com esse substrato literário de magnitude estética e humanista, voltamos a seguir o engenheiro de som, de nosso filme em questão, por sua aventura em Lisboa. Ao lado do universo pessoano, Winter relaciona-se com as crianças que estranhamente ajudam no desenvolvimento do projeto cinematográfico de Friedrich e, aos poucos, junta pistas para encontrar o amigo diretor que sumira misteriosamente. Em um dado momento do filme, Winter encontra o amigo filmando com uma câmara presa a suas costas e registrando impressões orais sobre a cidade. O reencontro acontece e ele solicita explicações para a situação inusitada. Nesse ponto, percebemos que o filme atinge o seu ponto nevrálgico em relação ao tema que tenta abordar.


O diretor explica ao amigo que está surpreso com a sua vinda a Lisboa e que, dado mais relevante, alterara o objetivo de seu projeto anterior. Nas ruínas de um prédio de cinema em Lisboa, Friedrich conta a Winter que não queria mais fazer um filme convencional. Havia chegado, então, à conclusão de que o cinema se massificara em excesso e mesmo filmes de vanguarda estavam tornando as imagens, registradas em películas, produtos que não mais educavam e extasiavam o público.


Essa explicação do descrédito do diretor em relação à arte cinematográfica lembra-nos vivamente das reflexões feitas pela Escola de Frankfurt, principalmente aquelas feitas por Walter Benjamin em relação à cultura de massa, à massificação e destruição da aura da obra de arte e à necessidade de se voltar a produzir e a receber o fenômeno artístico segundo critérios que assegurem a importância da elevação e enlevação do espírito. Esse pensador da cultura nos ensina que devemos preservar a aura, que é o valor genuíno da obra de arte.


Benjamim, em seu ensaio intitulado L‘oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité technique (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), coloca-se frente à produção da fotografia e do cinema, entre outras artes de necessária e rotineira reprodução em série, para discutir o papel da obra de arte de uma época em que a indústria cultural massifica o produto artístico. A prática da multiplicação poderosa de objetivos artísticos dissolveria a alma da obra de arte. Sobre a alma, vista como aura, teríamos que se trata de:

une singulière trame d’espace et de temps: l’unique apparition d’un lointain, si proche soit-il. Suivre du regard, un après-midi d’eté, la ligne d’une chaîne de montagne à l’horizon ou une brance qui jette son ombre sur lui, c’est, pour l’homme qui repose, respirer l’aura de ces montagnes ou de cette branche. Cette définition permet d’aperceboir aisément les conditionnements sociaux auxquels est dû le decline actuel de l’aura. Il tient à deux circonstances, étroitement croissants des mouvements de masses (BENJAMIN, 2000, p. 74).

Para Benjamin, com um apuro poético e romântico em sua definição, a aparição única de uma coisa distante acabaria por ser destruída por duas circunstâncias que seriam advindas do fato de tais coisas serem ansiosamente desejadas e, por conseqüência, ficarem mais próximas para a sociedade de massa. A ânsia de possuir o objeto artístico, ou similar, em uma proximidade irredutível, abre caminhos para a necessidade crescente de reprodução, de cópia do que seria a obra original e única.


Há, em nossa cultura, uma necessidade fetichista de possuir o objeto artístico, ou qualquer objeto semelhante que esteja exposto em alguma vitrine. Desta forma, unidade e durabilidade dão lugar à transitoriedade e à repetibilidade. Benjamin concluirá que: “Sortir de son halo l’objet, détruire son aura, c’est la marque d’une perception dont le ‘sens de l identique dans le monde’s’est aiguisé au point que, moyennant la reproduction, elle parvient à standardiser l’unique” (BENJAMIN: 2000, p. 76).


Friedrich, talvez projeção intensa dos conflitos de Wim Wenders, desta forma, comunga dos ideais propostos por Benjamin. Sua atuação estrutura-se no objetivo de purificar as imagens filmadas, tornando-as como aquelas percebidas pelo olhar infantil ou pela câmera colocada nas costas e que filma referenciais sem a influência do olhar civilizado e fetichista. Age como um Dziga Vertov da era contemporânea, além de querer disponibilizar seus filmes apenas para as gerações seguintes, já que o material feito não será visto por nenhum espectador vivo. Tais procedimentos, usados para refrear ou neutralizar os princípios da cultura de massa, estão na mesma natureza dos procedimentos adotados por Alberto Carreiro, resguardadas as diferenças de contextos estéticos e espácio-temporais.


Alberto Caeiro, se cineasta fosse, provavelmente faria uma depuração na tecnologia do cinema e produziria filmes em que o espectador tivesse condições de perceber a vida sem os aparatos ideológicos do dispositivo cinematográfico. Em tais filmes, o roteiro não teria a função de planificar aprioristicamente o que seria visto, a seqüência de ações não encaminharia para uma situação de ganho de algum valor que comprometeria a integridade da inocência dos homens perante si mesmo, perante os demais homens e perante a natureza na qual ele está inserido.


Winter escuta calmamente a exposição político-estética de seu amigo e lhe responde algo surpreendente. Ele acredita que as imagens devem continuar a ser feitas. A razão dos problemas de alienação não surgiria da semiose em si mesma. Como qualquer outra linguagem, o cinema possui condições de comunicar e expressar quaisquer conteúdos para quaisquer finalidades. A validação ética e moral do produto fílmico, ou de qualquer outra semiose, surge das escolhas feitas por seus usuários. Dessa forma, existe possibilidade de renovar, de recolocar a obra de arte, que foi contaminada pelo excesso de mercantilismo e de massificação ao qual foi exposta, em outros patamares. A chance de depuração do fenômeno artístico materializa-se quando a semiose fílmica, ou afins, for utilizada para a educação de valores humanistas, juntamente com a possibilidade da criação de jogos estruturais que valorizam a invenção, a fantasia, a criatividade que é capaz de rejuvenescer o olhar e as práticas artísticas e comunicacionais.


Este ponto de vista, de certa forma, coaduna-se com a estética de Álvaro de Campos. Aceita-se o burburinho da vida, a cultura corrente, os avanços e ganhos tecnológicos e científicos. Aceita-se o cinema como a maior tecnologia comunicacional e artística de todos os tempos. Registra-se a variabilidade de vida com a câmera que se mostra tão poderosa quanto o olho humano, mas que do olho humano ainda necessita para focalizar, alinhar, demarcar os conteúdos a serem impressos na película. Da opacidade do fenômeno fílmico, pode se criar mecanismos reflexivos capazes de explicitar as modalidades e finalidades de tal linguagem, como nos ensina Ismail Xavier (2005). Do discurso pronto e acabado, surge a possibilidade de evidenciar as estratégias discursivas utilizadas para a exposição de situações e de ideais demarcadores do nível de enunciação. Assim, o filme passaria além do contexto em que a diversão apresenta um fim em si mesma, levando o público a um campo de reflexão sobre o que assiste e sobre o que é assimilado e sentido através da experiência de intelecção e de fruição.


Esse campo de sensorialidade e de fruição aproxima o ponto de vista de Winter do ponto de vista de Álvaro de Campos. Há de sentir e experimentar todas as situações que a cultura é capaz de oferecer. Ao lado da fruição intensa, incrementa-se a condição da intelecção reflexiva e avaliativa que assegura o equilíbrio do gozo advindo da contemplação, do enlevo que a obra de arte ainda deve produzir.


Friedrich escuta o amigo humanista e resolve voltar ao projeto original de produção de um filme sobre Lisboa. Um filme com possibilidades de ainda ser feito e ser assistido, com um frescor instigante que os guiará a escolhas criativas, produtivas e humanistas quanto ao exercício artístico. Os dois saem a filmar por ruas, praças, edifícios, pessoas e outras situações lisboetas. O planejamento com roteiros e decupagem é deixado de lado para que se siga a dinâmica do olhar infantil que se encanta com as coisas como se elas não existissem antes ou se existiam, ainda podem ser recolocadas em outras formas de existências.


Aqui, sentimos que Wim Wenders nos propõe um novo tipo de cinema, inspirado em uma imbricação dos valores expostos pelos dois heterônimos pessoanos que são Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Um cinema capaz de proporcionar diversão, fruições sensoriais e afetivas, além de elementos que fomentem a discussão sobre o produto artístico que é recebido. De simples artefacto fabril, o filme passaria a condição de fenômeno no qual estão imbricadas possibilidade de re-presentar o universo em uma dialética entre aquilo que está dado e o que ainda pode ser feito.


O hipertexto fílmico explicita ainda a contribuição feita pelo hipotexto poemático. Sem os poemas de Fernando Pessoa, dificilmente haveria acordo entre a visão do diretor e a visão do engenheiro de som. Esse microscomo, que representa o macrocosmo do confronto entre arte genuína e arte massificada, vem à tona e é direcionado por discussões e conclusões advindas do campo literário. Este campo que, como nos diz Jeanne Marie-Clerc (1993), alimentou e possibilitou ao cinema transformar-se em uma arte de cunho sério e produtivo, apesar de suas veleidades em seguir gêneros de grande apelo popular. A continuação dessa relação transtextual, de ricas contribuições recíprocas, segue seu curso, oferecendo-nos filmes metalingüísticos, e afins, que não carregam no didatismo, mas que equilibram a diversão, o humor, o jogo a questões reflexivas e educativas, como é o caso de O céu de Lisboa.

Referências:
AUMONT, Jacques. Dicionário teórico e crítico de cinema. Trad. de Eloísa Araújo Ribeiro. Campinas: São Paulo, 2003.
BENJAMIN, Walter. Oeuvres III. Trad. do alemão por Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard, 2000.
CLERC, Jeanne-Marie. Littérature et Cinéma. Paris: Nathan, 1993.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: Literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
PESSOA, Fernando. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
SARAIVA, António José; LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1994.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: A opacidade e a transparência. 3. ed. revista e ampliada, São Paulo: Paz e Terra, 2005.
WENDERS, Wim. Sob o céu de Lisboa (Lisbon Story). Alemanha/Portugal, 100 minutos. Baseado em poesias de Fernando Pessoa, 1995.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio




Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)


Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.


Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,


Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,

Se quise'ssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.


Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento -

Este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.


Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.


E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.
(Fernando Pessoa - Ricardo Reis)

domingo, 4 de maio de 2008

Aos Deuses



Aos deuses peço só que me concedam


O nada lhes pedir. A dita é um jugo


E o ser feliz oprime


Porque é um certo estado.


Não quieto nem inquieto meu ser calmo


Quero erguer alto acima de onde os homens


Têm prazer ou dores.

(Fernando Pessoa/ Ricardo Reis)

Um percurso da sensibilidade artística em "No Caminho de Swann", de Marcel Proust



A narrativa No Caminho de Swann, de Marcel Proust, abre a grande aventura literária que é a obra Em busca do tempo perdido. Junto a outros seis volumes contínuos, esta narrativa estrutura-se como uma sinfonia, em que no primeiro movimento somos apresentados aos principais temas que serão minuciosamente desenvolvidos nos demais volumes seguintes.
O narrador-protagonista, no primeiro volume desse exercício estético e memorialista, encontra-se na fase adulta e imerge na recordação de sua infância e adolescência vividas na pequena vila de Combray. Experiências de vida intensas são envoltas pelas relações familiares com seus pais, avós, tia-avós e a comunidade de uma cidadezinha que funciona como contraponto para a agitada Paris do final do séc. XIX. O pequeno Marcel nos expressará seu amor por sua mãe e as investidas de seu pai para que ele assumisse um comportamento adulto, ao mesmo tempo em que seremos também apresentados ao seu universo de formação artística.
Em um segundo momento, seremos levados à vida de Swann, um dos vizinhos e amigos da família, em suas investidas amorosas, em suas relações conturbadas na aristocrática sociedade parisiense e, mais importante para nossos interesses, ao seu comportamento diante das práticas e interesses artísticos de seu meio e época. Interessa-nos de perto o primeiro momento da narrativa proustiana, aquele que diz respeito a como o pequeno Marcel entra em contato com o mundo artístico, com a pintura, a escultura, a música, a arquitetura e, em especial, com a literatura e as concepções de arte advindas desse processo.
Em Combray, é peculiar e exemplar o convívio que Marcel tem com sua avó materna, pessoa de apurada sensibilidade para com a vida e para com o mundo cultural, situação essa que influenciará o pequeno garoto durante toda sua vida. Deste contato, vemos surgir as idéias sobre o fenômeno artístico que mais tarde, nos volumes subseqüentes, serão desenvolvidas de modo mais sistemático. Nesse primeiro momento, os pensamentos do garoto estarão envoltos ainda por aquelas sensações, sentimentos e surpresas típicos dessa fase de descoberta e de formação.
Um dos primeiros pontos da percepção e de compreensão infantil e juvenil de Marcel vem da prática que a avó materna tinha ao presentear as pessoas. Sua exigência salutar era a de que o presente tivesse um valor estético. Nada de utilitarismos poderia comprometer o que era comprado e oferecido, mesmo que isso dificultasse a vida das pessoas que recebiam tais presentes. Vejamos como este comportamento peculiar, pois acontecia em uma época na qual a produção em série já invadia o campo do artefacto artístico e já se fazia sentir o que, mais a frente, viria a se chamar de contexto de indústria cultural, causava na impressão do neto de índole bastante observadora. A passagem é um tanto longa, mas merece ser destacada em sua extensão natural, pois trata de uma lembrança que influenciará o comportamento do artista em formação:

Na verdade, jamais se resignava [ a avó materna ] a comprar qualquer objeto de que não se pudesse tirar algum proveito intelectual e sobretudo o que nos proporcionam as coisas belas, ensinando-nos a buscar deleite em outra parte que não nas satisfações do bem estar e da vaidade. Até quando tinha de fazer algum presente chamado útil, quando tinha de dar uma poltrona, um serviço de mesa, uma bengala, procurava-os ‘antigos’, como se, havendo seu longo desuso apagado em tais coisas o caráter de utilidade, parecessem antes destinadas a contar a vida dos homens de outrora que a atender às necessidades de nossa vida atual. Gostaria que eu tivesse no quarto fotografias dos mais belos monumentos ou paisagens. Mas, no momento de fazer a compra, e embora a coisa representada tivesse um valor estético, achava ela que a vulgaridade, a utilidade, logo reassumiriam seu lugar, pelo processo mecânico de representação, a fotografia. Procurava então um subterfúgio, tentando, senão eliminar de todo a vulgaridade comercial, pelo menos atenuá-la, substituí-la o mais possível pelo que ainda fosse arte, introduzir-lhe como que várias ‘espessuras’ de arte: em vez de fotografias da catedral de Chartres, das fontes de Saint-Cloud, do Vesúvio, informava-se com Swann se algum grande mestre não os havia pintado, e preferia dar-me fotografias da catedral de Chartres por Corot, das fontes de Saint-Cloud por Hubert Robert, do Vesúvio por Turner, o que constituía um grau de arte a mais (PROUST: 1993, p. 44-45).


O narrador-protagonista assegura-nos, seguindo a apresentação dos hábitos da velha senhora, que o fotógrafo, no caso exemplificado, era redimido se aproximasse de uma representação estética do refencial, afastando-se, pois do fenômeno empírico que traria uma condição de inferioridade e de vulgaridade ao que era representado. Em várias circunstâncias, esse hábito ocasionara dissabores no dia-a-dia, como o exemplo do caso no qual Marcel conhecera Veneza através de um desenho que o pintor Ticiano havia feito e que, como é de se esperar de um grande artista, não possuía muitos vínculos com a realidade sentida e expressada.

Caso semelhante repete-se quando acompanhamos a bondosa senhora presentear uma poltrona a um jovem casalzinho, criando uma situação quase cômica, se a natureza idealizadora de sua crença na estética não nos fizesse ficar sérios para refletirmos sobre a delicadeza do gesto. Marcel assim nos diz sobre a situação:

[...] as poltronas oferecidas por ela a um parzinho recente ou a velhos casais e que, à primeira tentativa para se servirem delas, logo desabavam sob o peso de algum dos destinatários. Mas minha avó teria julgado mesquinho preocupar-se muito com a solidez de um móvel onde ainda se distinguiam uma flor, um sorriso, às vezes uma bela imaginação do passado. Até aquilo que nesses móveis correspondia a uma necessidade, como se apresentasse de uma feição a que estávamos desabituados, a encantava como esses antigos modos de dizer em que descobrimos uma metáfora, apagada, em nossa linguagem atual, pelo desgaste do hábito (idem, p. 45).


O narrador-protagonista segue lembrando-se de que também ao presentear com um livro, como os de George Sand que a avó lhe dava, ela os escolhia, de preferência aos outros, porque eles traziam um modo de vida, um linguajar campestre e “cheio de expressão em desuso, convertidas em imagens, e que não se encontravam mais senão no campo” (idem, p. 45). Estas características teriam a função de trazer uma felicidade ao espírito de quem recebia tais obras e criavam uma sensação como que de impossíveis viagens ao tempo, como o narrador constata.
O comportamento da avó, considerado como que excêntrico pelos hábitos europeus do século vinte, além de ser um indicativo de como o garoto tem sua sensibilidade estética educada, serve também de ponto de comparação com aquilo que alguns estetas costumam discutir. Através dessa sensível e exemplar situação criada por Proust, percebemos como o artista realmente é uma antena de sua raça e de sua época, como nos diria Ezra Pound.
Um dos pontos de valoração, do programa estético assistemático da avó do protagonista, envolveria o que se denomina de aura de uma obra de arte. E sobre este assunto, retomamos as clássicas reflexões de Walter Benjamin que disseca sua época, final do séc. XIX e início do séc. XX, no que diz respeito à produção artística, bem como a sua recepção.
Benjamim, em seu ensaio intitulado L‘oeuvre d’art à l’ère de sa reproductibilité technique (A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), coloca-se frente à produção da fotografia e do cinema, entre outras artes de necessária e rotineira reprodução em série, para discutir o papel da obra de arte de uma época em que a indústria cultural massifica o produto artístico. A prática da multiplicação poderosa de objetivos artísticos dissolveria a alma da obra de arte. Sobre a alma, vista como aura pelo pensador da Escola de Frankfurt, teríamos que se trata de:

une singulière trame d’espace et de temps: l’unique apparition d’un lointain, si proche soit-il. Suivre du regard, un après-midi d’eté, la ligne d’une chaîne de montagne à l’horizon ou une brance qui jette son ombre sur lui, c’est, pour l’homme qui repose, respirer l’aura de ces montagnes ou de cette branche. Cette définition permet d’aperceboir aisément les conditionnements sociaux auxquels est dû le decline actuel de l’aura. Il tient à deux circonstances, étroitement croissants des mouvements de masses (BENJAMIN, 2000, p. 74).

Para Benjamin, com um apuro poético e romântico em sua definição, a aparição única de uma coisa distante acabaria por ser destruída por duas circunstâncias que seriam advindas do fato de tais coisas serem ansiosamente desejadas e, por conseqüência, ficarem mais próximas para a sociedade de massa. A ânsia de possuir o objeto artístico, ou similar, em uma proximidade irredutível, abre caminhos para a necessidade crescente de reprodução, de cópia do que seria a obra original e única.
Há, em nossa cultura, uma necessidade fetichista de possuir o objeto artístico, ou qualquer objeto semelhante que esteja exposto em alguma vitrine. Desta forma, unidade e durabilidade dão lugar à transitoriedade e à repetibilidade. Aconteceria, nesta dinâmica, a destruição do que seria a aura da obra de arte. Como se tivesse lido a passagem de Proust que aqui destacamos, Benjamin concluirá que: “Sortir de son halo l’objet, détruire son aura, c’est la marque d’une perception dont le ‘sens de l identique dans le monde’s’est aiguisé au point que, moyennant la reproduction, elle parvient à standardiser l’unique” (BENJAMIN: 2000, p. 76).
O caráter de unicidade de uma obra seria a sua colocação na esfera da tradição que valoriza ideais e sentidos estabelecidos por um consenso de recepção por parte de um público educado e sofisticado, que são úteis para a continuação de um determinado padrão de vida e repertório de valores. Dessa forma, a flor, o sorriso, a bela imaginação do passado que a avó do pequeno Marcel via na poltrona que presenteava, são características que funcionam como o resgate da aura de um móvel que guarda em si padrões de vida que se valorizam como positivos, e que de tal móvel estetizado deveríamos manter uma distância respeitosa, devido a sua importância passada, e de tal respeito surgiria a fruição pela idéia de que a sensação da lembrança ocasiona a terna felicidade das coisas que alimentam a vida.
Não há dúvidas de que o ideal de aura proposto por Benjamin seja carregado de um posicionamento romântico que deseja assegurar a recepção de um fenômeno artístico por determinada época. Época ideal porque percebe a vida cultural de uma época também considerada ideal. Poderíamos pensar que haveria certa aversão por sentidos que são feitos diacronicamente, sentidos que são feitos por heterogêneos e evolutivos horizontes de expectativas, como nos ensinam os postulados de uma teoria como a da Estética da Recepção. No entanto, a avó do pequeno Marcel e a Escola de Frankfurt parece ter razão em nos avisar sobre os perigos causados por uma desmedida de utilitarismo, de proximidade e de uso descartável que criam uma condição desfavorável a uma compreensão mais crítica e produtiva dos fenômenos artísticos.
Ao lado destas lembranças que dizem respeito ao desenvolvimento de uma sensibilidade via núcleo familiar, podemos acompanhar Marcel vasculhando o que a idílica Combray poderia lhe oferecer de material de percepção e de emoções estéticas. Em seus passeios, descortina-lhe aos olhos ansiosos velhas igrejas com suas arquiteturas seculares, campanários que se erguem e de onde se avista toda a região da vila, tapeçarias que narram sagas antigas, vitrais por onde luzes variadas permitem a substantivação de nuances de cores e formas, músicas feitas por algum vizinho que, inevitavelmente ficarão relegadas ao esquecimento, ruínas de castelos por onde caminharam princesas e cavalheiros franceses, leituras de romances em um jardim similar ao de conto de fadas; enfim, belezas feitas pela criatividade e sensibilidade do homem, ao lado das típicas belezas naturais do lugar, que ainda não foram massificadas pela incessante movimentação fabril e febril da grande cidade.
São várias as ocasiões em que vemos o narrador-protagonista imerso nessas apreciações de uma arte que ainda teima em manter sua aura. É constante a preocupação de Marcel em receber o fato artístico em sua unicidade e durabilidade, como podemos acompanhar no fragmento que nos mostra um dos vários passeios que a família do garoto fazia pela vila, nos quais se contemplava, nesse caso, a arquitetura de uma tradicional igreja:

Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esta justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, os tivessem batido e escorregado (PROUST, 1993, p. 66-67).


A tradição sócio-cultural é assegurada pelo respeito considerado ao monumento, situação esta que a avó transmite ao neto e que este perpetua em sua escrita criadora e mantenedora de uma época que já não é integralmente a época do narrador-protagonista que, no ato da escritura, encontra-se no mundo adulto e localizado em uma grande metrópole européia. A singularidade do campanário realmente evoca um passado que se deve perpetuar para assegurar a continuação de uma modalidade de vida desejada e que ainda insiste em viver tocada pelas cordas do coração, com as qualidades da naturalidade e da distinção. E Marcel continua:

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que a levava a estimar, e considera pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção (PROUST: 1993, p. 67).


Mesmo que a avó não dispusesse de uma educação formal, sua intuição a levava a acreditar que os grandes e verdadeiros monumentos, assim como a mais ingênua expressão de cultivo de flores, representavam algo de valioso em sua vida, a ponto de representar a integridade desta vida.
O campanário marcava o ritmo da vida da pequena cidade, no entanto quando o narrador faz o relato de como o monumento o tocava, bem como a sua família, não são as características de utilidade as colocadas em relevo. Ressalta-se o valor da tradição que repousa sobre a obra e o palimpsesto de valores que ele adquiriu desde a sua concepção até o último olhar do sujeito que devaneia depositou sobre ele. Mais do que um padrão de ordenação da vida da cidade, o campanário funciona como um repositório dos olhares e atenção flutuante ou tensa das pessoas atingidas por ele.
Marcel confessa, em seguida, que mesmo diante de fatos arquitetônicos mais vistosos e consagrados pela fama internacional, é do campanário de Santo Hilário que ele se lembrará mais e sentir-se-á sensibilizado pelas significações e fruições que tal obra ocasionou e continua a ocasionar em sua vida. O adulto relata que, após numerosas viagens e infindáveis visões de igrejas e de campanários, nada se equipara àquele que está encerrado em seu coração e pode emergir na consciência através da memória. Desta forma, sabemos que as lições da avó foram apreendidas e eternizadas, no sentido de se respeitar e de se assegurar a aura de uma obra de arte. Delicada e nostálgica é a afirmação do adulto, já escritor, nessa retomada de algo que lhe age ainda na alma:

Mas como a memória, por mais gosto com que as executasse, não conseguisse pôr nessas pequenas gravuras [ou as viagens e recepções feitas] o que eu de há muito havia perdido, isto é, o sentimento que nos induz, não a considerar uma coisa como um espetáculo, mas a tê-la como um ser sem equivalente, nenhuma delas domina toda uma parte profunda de minha vida como a lembrança daqueles aspetos do campanário de Combray nas ruas que ficam atrás da igreja (PROUST: 1993, p. 69).


Ao lado da contribuição da avó materna para a formação da sensibilidade artística de Marcel, encontramos o convívio com Bloch, o colega judeu que comunga da mesma avaliação sobre uma das obras que mais toca o adolescente. Trata-se da obra do escritor Bergotte que, em um primeiro momento é percebida em sua dimensão fabular, para em seguida o sensibilizar no plano do discurso, da disposição fabular através da linguagem.
A obra lembra a circunstância de um trecho musical que arrebata o ouvinte, apesar de no início, a consciência não compreender o porquê do arrebatamento. O protagonista transforma-se em um ávido leitor que compara a leitura a um ato de amor que se no começo funciona de modo intuitivo, no seu desdobramento traz uma reflexão sobre o valor da dignidade, da unicidade e do valor tradicional. Após a sensação da fruição sobrevém o campo da reflexão, no qual ficamos sabendo sobre as preocupações em relação ao fazer artístico:


Depois notei as expressões raras, quase arcaicas, que gostava de empregar em certos momentos em que uma onda oculta de harmonia, um prelúdio interior, agitava-lhe o estilo; e era também nesses momentos que ele se punha a falar do ‘sonho vão da vida’, da ‘inesgotável torrente das belas aparências’, do ‘tormento estéril e delicioso de compreender e de amar’, das ‘comoventes efígies que enobrecem para sempre a fachada venerável e encantadora das catedrais’, quando expressava toda uma filosofia nova para mim, com maravilhosas imagens, que pareciam ter elas próprias despertado aquele canto de harpas que então se elevava e a cujo acompanhamento emprestavam qualquer coisa de sublime (PROUST: 1993, p. 95-96).


As alegrias advindas dessa leitura da obra de Bergotte atingiam o âmago de Marcel. De todos os livros se se pudesse reter uma fórmula de uso discursivo, tal uso traria uma espessura e um volume que ampliariam o espírito do leitor adolescente. Ao objeto artístico, vemos a envoltura do sublime que, como comentamos antes, poderia ser traduzido pela nobreza, unicidade e valor digno procurado pela avó do garoto e sistematizado nas reflexões estéticas de Walter Benjamin.
O olhar do narrador, porém, já se desloca para um espaço além da fruição, aquele espaço em que se observa a tecnologia da composição artística no que ela possui de desautomatização da vida pragmática. Exemplos disso são as causas explicitadas do encantamento que podem ser localizadas nas estratégias do romancista lido, tais como o fluxo melódico, as expressões antigas, as expressões muito simples e conhecidas colocadas em evidências, as passagens simples, a brusquidão, o acento quase rouco.
Da natural atenção em relação à estória, acompanhamos a passagem para a preocupação em se analisar o que ocasionaria a presença do sublime. As ondulações da profundidade da escrita tomam o lugar das ondulações de superfície e surge o enlevo com as interrupções da narrativa principal que Bergotte tinha o hábito de compor. Assim, acompanhamos de perto a gênese de uma das estratégias mais habituais do texto do escritor Marcel Proust, quando seu protagonista biografemático destrincha o método de composição de um de seus escritores favoritos:

Nos livros que se seguiram, ante alguma grande verdade, ou o nome de uma catedral famosa, ele [o escritor Bergotte] interrompia a narrativa e, com uma invocação, uma apóstrofe, uma longa prece, dava livre curso àqueles eflúvios que, em suas primeiras obras, permaneciam interiores a sua prosa, revelados unicamente pelas ondulações da superfície, e talvez ainda mais suaves, mais harmoniosos quando assim velados e quando não se poderia indicar de modo preciso onde nascia e onde expirava seu murmúrio. Esses trechos em que ele se comprazia, eram nossos trechos prediletos (PROUST: 1993, p. 97).

A digressão é uma constante nos livros de Bergotte que funcionam como exemplos de desligamento para Marcel. Seria uma forma de tirar a atenção das coisas aparentemente essenciais para as coisas verdadeiramente essenciais. Dessa forma, um procedimento nos é apresentado e sua importância será preciosa para compreendermos como o olhar-escrita do narrador é colocado em funcionamento.
Nesse ponto, de nossas reflexões, vale a pena nos lembrar do gênero no qual essa narrativa de Proust usualmente é colocada. Acompanhamos uma personalidade em formação e essa formação é especializada porque faz parte de um ensino, por vezes assistemático e por vezes sistemático, sobre o fazer artístico, sua teorização e sua avaliação crítica.
Mass (2000, p. 67), acompanhando os processos de constituição do romance de formação, assegura-nos que a questão central dessa forma é a do aperfeiçoamento individual que envolve o conceito de perfectibilité, que já circulava no discurso intelectual da segunda metade do século dezoito, por intermédio de Rousseau. O aperfeiçoamento individual passaria pela “formação integral do indivíduo, harmonizando e equilibrando suas tendências e talentos naturais ao lado de sua formação para a sociedade” (Idem; p. 69).
Mais do que um romance de formação, no entanto, o caso que estudamos enquadra-se na tradição do romance de formação do artista, ou Künstlerroman. Destaca-se, nessa modalidade, o fato de que o narrador-protagonista, já adulto e com sua carreira consolidada, recorda normalmente, em uma narrativa de encaixe que traz o esquema de romance dentro do romance, os esforços em prol da apreensão e do domínio do aparato tecnológico que lhe possibilita a consecução de seus objetivos pertinentes à arte de sua aptidão (SANTANA: 2003, p. 49).
As narrativas do Künstlerroman dizem respeito à direção formativa sistematizada, ou sob outra modalidade de aprendizado, em seus conteúdos e altamente voltada para um objetivo definido de modo apriorístico. Neste tipo de narrativa, as aptidões adquiridas funcionam como poderoso fator de exclusão para outras competências. O artista, no caso do literato, adquirirá as maneiras de compor seu objeto artístico em uma dinâmica de inclusão ilimitada de saberes que é sem precedentes em outra área de produção humana. Tal fato decorre da exigência que o fenômeno artístico possui em relação ao domínio de conhecimentos e saberes heterogêneos, para cumprir de modo satisfatório, uma de suas funções que é a de falar sobre as coisas da vida humana, de modo estetizado.
O Künstlerroman (SANTANA: 2003, p. 51) é um dos gêneros romanescos que mais contribuíram para que o romance moderno e pós-moderno tivesse condições para refletir sua própria composição e funcionalidade. Essa forma específica propicia ao artista os meios para desmascarar convenções improdutivas no campo da produção artística, possibilitando condições para que se reflita sobre e exercite-se, no próprio enunciado literário, novas possibilidades de composição literária.
Esse exercício de compreensão do fazer literário é feito de modo peculiar no Kkünstlerroman de Proust. Tal processo é levado adiante, nesse primeiro volume da Recherche, como se o olhar infantil e adolescente conformassem a compleição do narrador adulto. Para clarear o processo, valemos novamente das reflexões de Walter Benjamin, agora no texto Paris, Capital do séc. XX.
A compleição hibridizada do narrador adulto assemelha-se a condição do flâneur, refletida por Benjamin. Este estudioso nos falará do artista que anda por Paris, exemplo decalcado de Charles Baudelaire, com um olhar de desligamento em relação à vida pragmática. Diante de uma sociedade maquínica, massificada em seus procedimentos e gostos, o artista vagaria por lugares imprevisíveis que funcionam como barricadas ao automatismo imposto pela indústria de bens e pela indústria cultural, em específico. Na cidade, este novo sujeito resistiria à proximidade excessiva e à dessacralização da arte e da vida em geral. Nas palavras de Benjamin:

É o olhar do flâneur cuja forma de vida ainda envolve com um brilho reconciliador a do citadino da grande cidade, logo destinada a não mais conseguir consolação alguma. O flâneur permanece ainda no limiar da grande cidade, como também no limiar da classe burguesa. Nenhuma das duas o subjugou ainda. Não está à vontade nem numa nem outra. Procura um asilo na multidão. [...] A multidão é o véu através do qual a cidade habitada faz um sinal para o flâneur com o olhar, como uma fantasmagoria (2002, p. 699)


Esta “fantasmagoria” pode ser observada no exercício de desligamento, a flânerie, sob a qual funciona o olhar do narrador-personagem de nossa narrativa. Com a lição apreendida de sua avó materna, percebemos a engenhosa disposição na qual este narrador se encontra. É um narrador homodiegético actorial quando vive a época recordada como se ela estivesse ativa em sua vida adulta. Essa condição é percebida quando abrimos este primeiro volume e nos encontramos imersos na fantasmagoria do “despertar do sonhador”.
Nessa seqüência bela e instigante, vemos a estrutura espácio-temporal se desvanecendo na memória do sujeito que não se esforça para colocar ordem nas lembranças que lhe vêm à tona. Rompe-se a distância que seria natural entre o narrador adulto, aquele que seria capaz de ativar e de controlar os fatos e situações lembrados, e o narrador-protagonista em sua infância.
A dinâmica criada entre o narrador homodiegético actorial (aquele que presentifica as vivências passadas) e o narrador homodiegético autorial (aquele que controla fria e racionalmente tais vivências) oferece condições para a flânerie se instalar. A segunda posição narrativa aproxima, de modo racionalizante, o sujeito do objeto artístico, enquanto a primeira causa uma imersão na qual o sujeito sente a condição do sublime em toda a sua intensidade. O viver outra vez e intensamente a vida que passou significa um colocar-se no seio da tradição, da unicidade e integridade do fato que verdadeiramente não se encerrou. Desta forma, a aura do fato estetizado se mantém ativa e ocasiona um encantamento semelhante ao vivenciado pela primeira vez.
A narrativa de Proust, neste primeiro volume, sugere a necessidade de um alheamento do sujeito receptor em relação à obra de arte de qualquer natureza. Esse alheamento traduz-se por pela necessidade de inserir o fenômeno artístico no campo do exercício lúdico e da fruição, contextos estes que minimizam o valor utilitarista do fenômeno e enaltece sua singularidade como produção artística.
Na seqüência inicial deste primeiro volume-sinfonia de Proust, denominada usualmente de “O despertar do sonhador”, Marcel adulto reflete sobre o fato de que “um homem que dorme mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos” (PROUST:1993, p. 11). No entanto, o mesmo narrador assegura que essa ordenação pode-se confundir e romper.
Neste momento é que se estabelece na narrativa as infinitas possibilidades de existência que o aparato artístico nos acostumou a observar. Observância desligada, mas não desleixada. Observância feita de devaneios e felicidades que vão sendo acordadas de seu sono provisório, apesar do passar tirânico do tempo que nos obriga, de modo constante a compreender o que se passa no espaço artístico e no espaço da vida.
O aprendizado da sensibilidade estética, desta forma, segue seu curso, despertando as sensações advindas de estadas no campo, de passeios ao lado de rios cheios de nenúfares, de histórias de desgraças amorosas, de cheiros de comidas campesinas que exalam da cozinha, de caminhos de Swann e de caminhos de Guermantes. Sobretudo, são sensações, reflexões e sentimentos sobre a formação do artista que nessa fase são tão intensas, porém diáfanas como o olhar despreocupado e lúdico. Apreensão, expressão e jogo da/na linguagem de gozo, repletos de atenção e de sinceridade, tornam-se peculiares ao olhar e condição infantil e adolescente quando hibridizado pela condição do adulto feita pela flânerie, que refrigera e subjaz sua perspectiva.

Referências:
BENJAMIN, Walter. Oeuvres III. Trad. do alemão por Maurice de Gandillac et al. Paris: Gallimard, 2000.
BENJAMIN, Walter. Paris, capital do séc. XIX. In: LIMA, Luiz Costa Lima (org.). Teoria da literatura em suas fontes - vol. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
GENETTE, Gerard. Palimpsestes: Literature au second degré. Paris: Éditions du Seuil, 1982.
MASS, Vilma Patrícia. O cânone mínimo: O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Trad. de Mário Quintana, 15. ed. São Paulo: Globo, 1993.
SANTANA, Jorge Alves. O narrador homodiegético em Infância, O apanhador no campo de centeio, e Tia Júlia e o escrevinhador. 2003. 167p. Tese (Doutorado em Letras – Teoria da Literatura) – Universidade Estadual Paulista, Campus de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, 2003.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008




Quase

(Mário de Sá-Carneiro)


Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Dragões e paraísos: gênero e rizoma



No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades – que não aconteciam, mas que importa? – a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
(Caio Fernando Abreu: 2005, p. 135)


A contística de Caio Fernando de Abreu em Os dragões não conhecem o paraíso, com sua singular beleza construtiva e inusitado olhar sobre o humano e as coisas, oferece-nos um campo fértil para refletirmos sobre modalidades de cartografias subjetivas que podem ser construídas e veiculadas pelo texto literário.
A coletânea específica é formada por treze contos que, grosso modo, tratam de personagens dispostos em situações de abandono pessoal e/ou social; amores não-retribuidos; medo/desejo da proximidade com a morte; identificação errática ou simétrica com pessoas, coisas, situações e animais; entre outras situações de desequilíbrio/re-equilíbrio que colocam o sujeito na condição do entre-lugar. Uma legião de tipos excêntricos está jogada na procura de mecanismos que consolidem sua ânsia de ativar-se como sujeitos mais ativos, ou ao menos recíprocos para com os demais sujeitos, em detrimento da lastimável condição de títeres de arbitrárias forças territorializantes a sua volta.
Do conjunto de narrativas, verticalizamos quatro contos que melhor refletem o tipo de contexto e comportamento úteis para este nosso trabalho. Predominantemente, tal análise será feita com o auxílio de conceitos da teoria de gênero, com predomínio da perspectiva de Judith Butler (1999) e, ainda, com a esquizoanálize, proposta por Felix Guattari (1992) em seu trabalho, ora isolado ora em conjunto com Gilles Deleuze (1966). Ressaltaremos nesse encontro de reflexões o hipotexto teórico freudiano que, por vezes, funciona como base para os dois desdobramentos.
Os dragões, ou subjetividades heterogêneas e proteiformes, de Caio Fernando Abreu podem ser acompanhados, com maior proximidade nos contos: Linda, uma história horrível; O rapaz mais triste do mundo; Dama da noite, e, no conto paratextual, Os dragões não conhecem o paraíso. Outros, até mesmo pelo rigor temático da coletânea, também apresentam similaridades com as questões a ser tratadas; porém, acreditamos que este corpus dá conta de exemplificar o contexto e a substancialização diafána dos dragões que são naturalmente ignorantes ou, por outro lado, conscientemente expulsos dos paraísos dos desejos permitidos; paraísos que o autor nos apresenta com elegância estética, pertinência crítica e farta dose de ceticismo que de tão pungente beira a esperança.
Em Linda, uma história horrível, acompanhamos o retorno de um rapaz, não-nominado à casa de sua mãe. Essa volta parece ser a ação final do protagonista que, aidético já na fase de contaminações crônicas, e abandonado pelo companheiro de sua relação homo, procura auxílio no decrépito corpo de sua mãe. Decrepitude humana e coisal formam a moldura da diegese que é sintetizada na figura da velha senhora, do lar que parece encerrá-la viva e, sobretudo, da pequena e velha cadela chamada Linda.
Esta narrativa aborda o tema de uma subjetividade que se manteve resistente e libertária diante de cartografias sócio-culturais de configuração do sujeito. No entanto, a narrativa parece apontar para a terrível punição do acaso, que é a AIDS, como querendo criar a lição moralista de que qualquer liberdade individual acarreta danos para o corpo social e o sujeito infrator sofre as penalidades pela culpa. Cabe ao protagonista apenas o gesto final de encarar o inevitável ocasionado por uma espécie de culpa irreparável. Vejamos o desfecho:

Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpuras, da cor antiga do tapete da escada – agora, que cor? -, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios
- Linda - sussurrou. – Linda, você é tão linda, Linda (Caio Fernando Abreu, 2005, p. 28).

O protagonista, em sua etapa final de via-crucis, descarna-se do lugar social que usufruía antes. Sabemos que seu companheiro o abandonou, sabemos que sua profissão estagnou-se e que sua vida social não terá continuidade. Sobretudo sabemos que seu fluxo libidinoso parece cortado pela contingência física e suas conseqüências. No entanto, a libido esbate-se ainda incessantemente. Move-se, aí, com mais vigor aquela aparelhagem maquínica, nos dizeres de Deleuze e Guattari (1966), que fomenta e utiliza as possibilidades restantes para a vida continuar.
Assim, o rapaz, mesmo acometido pela cronicidade da doença, ainda possui energia para identificar-se com os seres a sua volta. Essa identificação dá-se na aproximação feita com a mãe, na observação do envelhecimento do apartamento e de seus móveis e, sobretudo, na decadência da cadela.
Estes sinais, mais do que representar a negatividade óbvia da vida, demonstram a energia em fluxo. O sujeito não está congelado em uma instância final. Não é um produto acabado de situações esperadas ou não-esperadas, mas sim uma vida ainda em produção; ou como nos ensina Deleuze e Guattari, quanto ao contexto edipiano que se estende para toda a vida, quanto aos processos de substancialização e deslizamentos identificações: “A regra de produzir sempre o produzir, de inseri o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção produção”. (1966, p. 13).
O sujeito luta contra a morte, situação de inação, e, conseqüentemente, contra o cessar do fluxo libidinoso. O deslocamento do ego nos seres do seu campo vivencial, mesmo que tais seres apresentem uma insidiosa decrepitude, por mais paradoxal que possa parecer, é sinal de que a vida continua a fluir e a procurar alternativas para os cortes que lhe são feitos.
No segundo conto, O rapaz mais triste do mundo, Caio nos cria uma claustrofóbica situação envolvendo um homem mais velho, um rapaz e um homem observador no espaço de um bar de público alternativo. Um espaço que nos é apresentado como se fosse

Um aquário de águas sujas, a noite e a névoa da noite onde eles navegam sem me ver, peixes cegos ignorantes de seu caminho inevitável em direção um ao outro e a mim. Pleno inverno gelado, agosto e madrugada na esquina da loja funerária, eles navegam entre punks, mendigos, neons, prostitutas e gemidos de sintetizador eletrônico – sons, algas, águas – soltos no espaço que separa o bar maldito das trevas do parque, na cidade que não é nem será mais a de um deles. Porque as cidades, como as pessoas ocasionais e os apartamentos alugados, foram feitas para serem abandonadas – reflete, enquanto navega. ( 2005, p. 55)

O homem observador é o narrador homodiegético, pois conta a estória sem dela, aparentemente ser o protagonista. O caso maior envolveria um outro homem, na faixa de quarenta anos, que aparenta cansaço, desilusão e começa a beber demais.A companhia desse homem é um rapaz que aparenta ter quase vinte anos “bebendo um pouco demais, não muito, como costumam bber esses rapazes de quase vinte anos que ainda desconhecem os limites e os perigos do jogo, com algumas espinhas, não muitas, sobras de adolescência”. ( 2005, p. 56).
Essa dupla é observada pelo narrador que se coloca à parte, mas bem atento ao encontro a ponto de não perder nenhum dos detalhes que envolvem o casal atípico da madrugada. Amorosamente são percebidas as situações de distanciamento, de solidão, de necessidade de carinho e de fisicidade, de confusão afetiva e, sobretudo, da certeza de que as pessoas fazem qualquer coisa para espantarem a solidão tão presente na madrugada de uma cidade grande.
Parece, que de início, cabe ao homem mais velho aconselhar o adolescente sobre os bons caminhos da vida e, por sua vez, cabe ao rapaz expor suas dúvidas e seus desejos de encontrar um lugar social condigno com os planos de sua família e do bom senso comportamental do seu meio. Com as horas passando, o bar prepara-se para fechar e o rapaz, que trabalha como entregador de flores, propõe pagar a conta, no que é impedido pelo homem mais velho. A conta é paga e horas e horas de convívio confuso e difuso são coroadas por toques sedentos de outridade:

Ternos, pálidos, reais: eles se olham. Eles se acariciam mutuamente as mãos, deois os braços, os ombros, o pescoço, o rosto, os traços do rosto, os cabelos. Com essa doçura nascida entre dois homens sozinhos no meios de uma noite gelada, meio bêbados e sem nenhum outro recurso a não ser se amarem assim, mais apaixonadamente do que se amariam se estivesse à caá de outro corpo, igual ou diverso do deles – pouco importa, tudo é sede. (2006, p, 62)

Interessa-nos, desse encontro necessário, fortuito e nada fugaz, acompanharmos mais de perto a escondida figura do narrador-observador que do seu canto, exercita a arte de viver no outro o desejo que lhe sai pelos poros e pela boca e não pode ser interditado. O narrador, desdobra-se, então no outro, ou outros, que bebe e procura caminhos para seu fluxo de vida percorrer; o outro que também se coloca como o de fora-dentro da relação que capta, com tanto cuidado, e que preenche sua vida com os fragmentos a sua frente. Curiosa personagem que conclui:

Eu sou os dois, eu sou os três, eu sou nós quatro. Esses dois que se encontram, esses três que espia e conta, esse quarto que escuta. Nós somos um – esse que procura sem encontrar e, quando encontra, não costuma suportar o encontro que desmente sua suposta sina. É preciso que não exista o que procura, caso contrário o roteiro teria que ser refeito para introduzir Tui, a Alegria. E a alegria é o lago, não o aquário turvo, névoa, palavras baças: Netuno, sinastrias, E talvez exista, sim, pelo menos para suprir a sede do tempo que se foi, do tempo que não veio, do tempo que se imagina, se inventa ou se calcula. Do tempo, enfim. (2006, p. 62)

Do aquário limitado, o campo vivencial é transformado em lago. Espaço alargado e mais propício a juntarmos os elementos da narrativa para configurarmos o observador na figura do rapaz mais triste do mundo. Sim, também ele passa a ser, pela identificação com os tipos da madrugada, a pessoa mais triste do mundo, tal qual aquele homem de quarenta anos e o adolescente que se oferece para pagar a conta, apesar dos seus parcos recursos advindos do trabalho de entregador de flores.

O terceiro conto, Dama da noite, trata do óbvio tema da prostituta oferecendo seu trabalho a um adolescente. O encontro também se dá em um bar e o rapaz de classe média aproveita para conhecer mais a fundo o estranho tipo que está a sua frente e que fala, de modo compulsivo, sobre os planos tão queridos e fracassados de sua vida.
A prostituta é a narradora-protagonista. Por sua boca, acompanhamos suas reações e as reações do rapaz que lhe solicita o programa. De início, vemos uma subjetividade substancial, ciente do seu papel social, de suas estratégias de encontros e de seus desejos tanto carnais, quanto espirituais. Ela própria nos metaforiza sua condição, julgando conhecê-la. Vejamos a reflexão que permeia toda a narrativa:

Como seu eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código. Sei lá. Você fala qualquer coisa tipo ba, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota – ta me entendendo, garotão? (2006, p, 83)

A metáfora da roda gigante parece atentar para o fato que o tecido social elabora espaços oficiais para a dignidade e funcionalidade dos desejos permitidos, enquanto aqueles não corroborados são jogados em um espaço excêntrico ou inexistente nas possibilidades accionais. A protagonista, no que seria seu sórdido lugar de ação, parece entender a contrapartida de sua condição, mas assume o que lhe é esperado, como podemos acompanhar em sua fala:

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez sta escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. (2006, p. 86)

São colocadas características previsíveis para este tipo, além do caráter crítico à subjetividade do confronto. Aí, no encontro que se torna beligerante, a narradora coloca-se como aquela que cobra ações mais espontâneas por parte da juventude acéptica que a rodeia. Ela nos fala da juventude que não tem outros sonhos, senão aquele de cultuar a si mesma nos espelhos modernos do narcisismo fast food.
O encontro da dupla não dá em intimidade alguma. Ambos não conseguem travar nenhuma intimidade, depois de tantas feridas abertas. De vilã, acompanhamos a dama da noite transformar-se na moralista que denuncia hipocrisias de uma época. Mas, em seguida, vemos um outro deslocamento, que é mais interessante e produtivo para nossas reflexões futuras. A perigosa protagonista infantiliza-se mostrando uma de suas facetas de pessoa frágil, mesmo que diante daquele que seria seu algoz:

Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho. Eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo o dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada”. (2006, p. 88)

O ser do pós-tudo parece abarcar caracteres antangônicos da formação da personalidade da protagonista. Dessa forma, as ações previsíveis são penetradas por ações imprevisíveis e o sujeito desmobiliza o aparato sócio-cultural a sua volta. E a criança assustada se coloca desejosa daqueles tempos e espaços de outrora, quando se podia brincar de ser personagens em fluxo contínuo e não tão controlado como no presente.
O último conto que escolhemos, é aquele que dá título à coletânea: Os dragões não conhecem o paraíso. Seu início é titubeante, pois aponta para uma realidade fantasiosa e paradoxal: “Tenho um dragão que mora comigo. Não, isso não é verdade. Não tenho um dragão. E, ainda que tivesse, ele não moraria comigo nem com ninguém” (p. 129). No entanto, a metáfora vai deixando o campo retórico e abrangendo a vida do protagonista que passa a descrever esse dragão:
Para os dragões, nada mais inconcebível que dividir seu espaço – seja com outro dragão, seja com uma pessoa banal feito eu. Ou invulgar, como imagino que os outros devam ser. Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitários quanto eu me encontrei sozinho nesse apartamento, depois de sua partida. Digo quase porque, durante aquele tempo em que ele esteve comigo, alimentei a ilusão de que meu isolamento para sempre tinha acabado. E digo ilusão porque, outro dia,numa dessas manhãs áridas da ausência dele, felizmente cada vez menos freqüentes ( a aridez, não a ausência), pensei assim: Os homens precisam da ilusão do amor da mesma forma como precisam da ilusão de Deus. Da ilusão do amor para não afundarem no poço horrível da solidão absoluta; da ilusão de Deus, para não se perderem no caos da desordem sem nexo. (2006, p, 129)

Sim, um dragão havia dividido o espaço com o protagonista. Desse convívio, surgiram as querelas com os vizinhos que não estavam habituados com os comportamentos típicos do estranho animal. Normas foram colocadas e sistematicamente quebradas e a obrigação de uma adequação do animal ao condomínio se fazia necessária. Mas como adequar um animal que nem pode ser visto, já que o dragão era invisível, ao regime dos vizinhos e das demais pessoas?
Se o animal não podia ser visto, apesar de sua ruidosa presença, seu cheiro era sentido. Hortelã e alecrim davam o tom daquela conversa que sempre ocorria no lado direito do peito do protagonista, pois o bicho lhe falava diretamente do coração. E suas falas são falas de amizade, de parceria para que atitudes tidas como infantis tenham seu lugar nas relações humanas.
O protagonista diz que o dragão vem e vai. Ele não é uma dimensão constitutiva fixa do ser humano. E quando ele parte, instala-se o deserto do poder amar e, conseqüentemente, do poder viver de acordo com os seus desejos.
Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes. Nunca mais reflexos esverdeados pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, nunca mais fumaças coloridas ou formas como serpentes espreitando pelas frestas de portas entreabertas. Mais triste: nunca mais nenhuma vontade de ser feliz dentro da gente, mesmo que essa felicidade nos deixe com o coração disparado, mãos úmidas, olhos brilhantes e aquela fome incapaz de engolir qualquer coisa. A não ser o belo, que é de ver, não de mastigar e por isso mesmo também uma forma de desconforto. No turvo seco de uma casa esvaziada da presença de um dragão, mesmo voltando a comer e a dormir normalmente, como fazem as pessoas banais, você não sabe mais se não seria preferível aquele pantanal de antes, cheio de possibilidades – que não aconteciam, mas que importa? – a esta secura de agora. Quando tudo, sem ele, é nada.
(2005, p. 135)

Para o narrador-progonista, os dragões são temporários, mais do que seres substanciais, eles são estados de ação que tomam contam das pessoas e as tornam capazes de agir de modo diferente dos comportamentos previsíveis e emoldurados pelo senso comum. A partida do dragão corresponderia ao esperado amadurecimento e suposto enquadramento do sujeito às regras vigentes. Deus e o amor deveriam suprir a falta do dragão, pois seriam seus correlatos mais próximos. Porém, quando se olha para fora das janelas, o que se vê é uma cidade vazia de dragões e, conseqüentemente, vazia de Deus e de amor.

Quando acompanhamos as quatro narrativas sumariadas, percebemos que as personagens estão agindo no campo da flexibilidade accional. Suas características emergem de uma cartografia invariável para espaços nos quais a regra maior é a plasticidade subjetiva.

As tempestades de Shakespeare e de Peter Greenaway: construção e descontrução intersemiótica


Somos sujeitos de uma época que nos apresenta artefatos artísticos complexos e proteiformes. Tais produções são configuradas por linguagens tradicionais, como a escrita, a fala, as imagens, e são constantemente dimensionadas para um campo aberto a outras linguagens e veículos midiáticos presentes, porém colocados em nível sócio-cultural tido como inferior. No entanto, apesar de existir secularmente uma hierarquia entre as linguagens e os meios, a produção textual contemporânea está imersa em uma miríade de intersemioses criativas que encantam os receptores e, ao mesmo tempo, demandam suportes teórico-críticos e interpretativos multidisciplinares.
Do conceito de texto tradicional, a contemporaneidade caminha para um deslocamento capaz de abranger a heterogeneidade constitutiva e funcional das mensagens artísticas e não-artísticas produzidas. Texto, pois, transforma-se em um fenômeno lingüístico de estrutura e extensão heterogêneas e inclusivas em relação a elementos outrora tidos como exteriores.
Neste quadro, no qual o texto escrito enriquece-se com elementos de outras semioses e de mídias ou hipermídias com grande poder tecno-interativo junto a um público que se massifica rapidamente (GOSCIOLA, 2003, p. 37), verticalizamos nosso objeto de estudo. O mesmo é produto da predominante interpenetração de semiose escrita, a peça de William Shakespeare A tempestade (publicada em 1623), com o texto fílmico do diretor inglês multimidiático Peter Greenaway, A última tempestade ( Prospero’s Books), produção de 1991.
O texto clássico de Shakespeare é a última peça do autor e, naturalmente, condensa toda a tecnologia de escrita apreendida de forma individual e de migração epocal. Ou seja, a época elisabetana tem os seus valores refletidos nas ações do Duque e Mago Próspero. Além disso, tal texto é tido como um dos ápices daquilo que a literatura conseguiu fazer no Ocidente, tornando-se, ao lado dos clássicos gregos de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, marcos da capacidade criativa no campo da escrita literária.
Essa narrativa shakespeareana trata do projeto de vingança de Próspero, protagonista que era o Duque de Milão, um dos ducados mais prósperos de sua época. O Duque, no entanto, começa a afastar-se das questões políticas para mergulhar nos estudos de todos os livros disponíveis em sua época, em particular livros de magia. Nesse contexto, seu irmão Antônio junta-se a Sebastião, irmão do Rei de Nápoles, e rouba-lhe o Ducado, desterrando-o, com sua pequena filha Miranda, para uma ilha desconhecida.
Ao partir para a ilha do desterro, Próspero recebe a ajuda de Gonzalo, probo e velho conselheiro do Rei de Nápoles. A ajuda materializa-se em livros, comidas e outros bens úteis, para o desterrado manter-se vivo, ao lado de sua filha. Desses bens, o Duque traído valorizará sobremaneira os objetos de seu maior afeto que são os livros.
Quando Próspero chega à ilha, vence uma velha bruxa, Sycorax, que dominava o lugar e adota o seu filho, mistura de monstro e homem, Caliban. Grande parte do seu tempo é devotada aos estudos de magia para o fortalecimento de seu poder sobre os espíritos e elementos da ilha, e para a educação de Miranda e de Caliban. Porém, o objetivo de ensinar Caliban a ser humano não tem sucesso e o mago o transforma em reles e rebelde serviçal.
O grande objetivo de Próspero é vingar-se daqueles que o traíram. E a peça inicia-se justamente no momento em que ele coloca seu plano de vingança em curso. Com a ajuda do espírito do bem Ariel, fomenta uma grande tempestade sobre um navio, no qual todos os envolvidos no caso da traição (Antônio, Sebastião, Gonzalo, Alonso, entre outros) encontravam-se. Os náufragos dão na ilha e passam a ser encantados, até Próspero revelar as razões da situação e, em vez de puni-los, acaba por perdoá-los. Sim, o homem traído, após conversar longamente com Ariel sobre as falibilidades humanas e as potencialidades educativas do amor para com os homens frágeis em seu caráter, resolve perdoar no lugar de punir. Dessa forma, tudo termina bem quando se está bem.
A narrativa possui outras células accionais, que são ancilares; no entanto, o tema central ficcionaliza sentimentos humanos, tais como amor, ódio e perdão, que alicerçam a realidade julgada como verdadeira pelos sujeitos que nela estão inseridos. No caso em questão, a narrativa é permeada de situações oníricas, fantásticas e, em uma espécie de vanguarda de séculos antes, surrealistas. Estes elementos dão ao conjunto a moldura daquelas narrativas de caráter alegórico; ou seja, escreve-se um sentido indicando outro sentido subjacente ao primeiro. Assim, a idéia da tempestade diz respeito não à inclemência climática, mas às perturbações anímicas do ser humano.
Como narrativa literária, o autor veicula, com elegância e firmeza, uma mensagem que se firma como imorredoura, pois atravessa os séculos e ainda hoje fomenta reflexões sobre tópicos como: a realidade e o sonho; a maleabilidade dos sentimentos; e os contatos secretos do homem com as misteriosas forças da natureza. Esses elementos ocasionam um ganho de causa para a escrita que atingiu seu ápice e continua a fazer escola nos tempos contemporâneos.
Do quadro dado, acompanhamos a evolução incessante das estruturas midiáticas e podemos perceber que os temas universais são enriquecidos quando passam de um meio de transmissão para outros. A mudança de semiose parece refrigerar o tema e ampliar o seu leque de demanda. Assim, no final do Séc. XX, quando Peter Greenaway roteiriza e filma o seu Prospero’s Books, passamos a ter nas mãos um produto tecno-estético farto de questões para serem discutidas sobre o encontro e a intersecção de linguagens diferentes, bem como a relação entre perspectivas representacionais de épocas diferentes.
De início, o campo de pesquisa inibe-se com a fartura do material resultante do encontro ente as artes, literatura e cinema, e do encontro intersemiótico, signo lingüístico grafemático e signo lingüístico imagético, para mencionar apenas os dois tipos de semas de base que, na realidade, coabitam com variados outros semas o palimpseto textual. Por outro lado, suportes teóricos vão sendo conformados rapidamente para que se dê conta de tão engenhosas e cativantes produções que instigam, apesar do natural desnorteamento, o público contemporâneo.
Preconceitos quanto a tais imbricações de linguagem são abundantes, como nos alertam a pesquisadora francesa Jeanne-Marie Clerc (1985). Para ela, o campo de pesquisa que usualmente restringe-se a academias, elege para pesquisa objetos que tenham certa pureza de constituintes e funcionalidade pragmaticamente compreendida. Dessa forma, no caso específico de estudos sobre o encontro entre literatura e cinema, deve-se precaver contra dogmas e preconceitos tais como: quanto ao texto escrito – seu valor cultural de produto elitizado; a singularidade da composição individual; o valor da abstração educativa que o produto fomenta no receptor; a aura estética e ética que emana do produto escrito; entre outros; quanto ao texto fílmico – sua natureza de produção de massa e conseqüentemente seu alto poder de alienação; o descontrole do artista sobre o produto final; a qualidade dos valores éticos, determinada pelo aspecto quantitativo de recepção; e o nivelamento por baixo do poder de abstração causado pelas imagens e outras linguagens presentes no objeto fílmico.
Apesar de tantas contrariedades, é inegável percebermos que uniões do tipo literatura e cinema geram uma tecnologia completiva e produtiva quanto às linguagens de base. Quanto a sua funcionalidade, vale lembrarmo-nos do veredicto de Platão à escrita, quando ele a chama de Phármaco: algo semelhante ao remédio que não pode ser valorado em si mesmo, mas, sim, pelo uso que dele se faz; ou seja, nenhuma semiose é, em si mesma, positiva ou negativa, e tais judicações só deveriam ser feitas ao produto que já encerra determinada mensagem.
Clerc (1989), que, aqui, acompanhamos mais de perto, alerta-nos para a necessidade natural dos encontros tecnológicos e nos chama a atenção para o conceito de influência que alicerça essas relações. A autora nos lembra de que o cinema, em seus primórdios, foi auxiliado pelo texto escrito já consolidado. Os irmãos Lumiére usavam obras de Júlio Verne e de contistas clássicos como Charles Perrault, Hans Christian Andersen, os irmãos Grimm, entre outros, para conquistar a curiosidade do grande público e disseminar mais rapidamente sua produção. No entanto, esse sentido de influência criaria irremediavelmente a condição de subserviência de uma linguagem para com a outra. Quanto a isso, Clerc nos alerta que

[le] concept d’influence cinématographique, depuis les années 60, est en passe de tomber em désuétude.Les nouvelles conditions de création et de réception des objets culturels, au sein de cette civilisations marquée par l’empreinte des mass media et des loisirs, aboutissent à transformer considérablement les rapports entre l’auteur et son public, entre l’oeuvre et le monde. L’émergence de nouveaux fonctionnements imaginaires, en étroite relation avec l’illusion réaliste sécrétée par les technologies iconiques, aboutit à modifier la nature et les fonctions de la visualité, dans un univers où réalité et fiction s’échangent et s’interpénètrent constamment. (1989, p. 273-274)

Os novos funcionamentos de tecnologias de produção de sentidos estão jogados no circuito comunicacional de massa e seu uso flexibiliza o conceito de influência. Se antes, como na ótica de Walter Benjamin (2000), a qualidade de formação e de transmissão de mensagens estava sob o domínio predominante da narrativa oral contada por quem a vivenciou ou a escutou de fonte segura, na contemporaneidade, sabe-se que a linguagem de qualquer meio tem o mesmo poder de veicular e persuadir o público. Podemos repetir, então, a máxima de que o meio é polivalente em sua estruturalidade e funcionalidade.
Ainda com Clerc (1989), vejamos sua reflexão que baliza pragmaticamente nossos estudos comparativos:

[...] Ces interférences retentissent inévitablement sur la conception de l’oeuvre où s’abolisent les distinctions e les catégories. De même que la réalité où baignent les individus est imprégnée de fantasmes, de même les modes d’expression cinématographique et romanesque se rejoignent dans une collaborations où l’authenticité documentaire de la photographie cautionne l’irréalité de l’image mentale. Mais, plus que jamais, ces oeuvres mixtes posent question au langage, dans l’utilisation logique et rationnelle qui fondait jusqu’alors des siècles de culture occidentale. C’est autour de cette problématique du langage que se cristalliseront désormais les rapports entre less deux arts. ( p. 274)

No lugar de valorar a contribuição de uma linguagem para outra como influência original e, portanto, superior, a autora nos relembra da validade operacional das duas linguagens, independentes de variáveis culturais e de época. Toda linguagem possuiria em sua base o poder de representar, no caso, artisticamente a realidade. Dessa forma, o que vale é acompanhar o procedimento estrutural na articulação sêmica e intersemiótica.
Prospero’s Books, de Greenaway, entra aqui como um exemplo dessa coabitação harmoniosa. O diretor hipermidiático aproxima-se do texto clássico de Shakespeare com toda a reverência necessária, porém reveste-o dos avanços tecnológicos do hipertexto contemporâneo. Acompanhamos, no filme, o texto clássico em sua inteireza grafemática, já que as letras manuscritas estão na tela, ou em nível de sobreposição a alguma imagem, ou em nível de subposição. A linearidade do código narrativo é mantida com, inclusive, direito ao começo in media res, tão caro à necessidade de contensão do texto trágico. Acompanhamos e compreendemos bem a estória de Próspero disposta na película.
A adaptação estaria no campo da normalidade se o diretor, como já mencionamos, colocasse-se como um receptor apassivado de um poderoso texto. O que não é o caso, pois aos tradicionais mecanismos da literatura clássica, Greenaway agrega elementos reconstrutores e ressignificativos. Lesa majestade para uns, produção engenhosa e atual para tantos outros que são agraciados por uma narrativa multimidiática que transforma o produto fílmico em deleite para todos os sentidos físicos e em gozo para a inteligência do público educado, ou a se educar.
Se a narrativa clássica estava montada no eixo da sucessão de fatos na modalidade linearizada, o filme faz farto uso do que Sérguei M. Eisenstein (1969), em seu O princípio cinematográfico e o ideograma, chamou de montagem vertical, ou montagem em profundidade, ou, ainda, montagem polifônica (em concepção mais moderna). O diretor e teórico sobre o cinema, em consonância com os princípios teóricos da literatura de Roman Jakobson, atenta para o fato básico de a narrativa fílmica ser dada pela montagem, processo pelo qual dois campos semânticos justapostos se imbricam e criam uma terceira dimensão de sentido, situação esta semelhante ao da metáfora e da metonímia, figuras da retórica literária.
Esse procedimento acontece no nível microscópico da construção do plano e da seqüência, conceitos vistos aqui na perspectiva de Jacques Aumont (2001). Este procedimento seria o motor propulsor da narrativa, como Eisenstein comenta:

Então, montagem é conflito. Como a base de toda arte é conflito (uma transformação imagista do princípio dialético). O plano surge como a célula da montagem e, daí, deve ser também considerado através do ponto de vista do conflito. O conflito dentro do plano é a montagem em potencial, no desenvolver de sua intensidade, fragmentando a gaiola quadrilátera do mesmo plano e fazendo eclodir seu conflito através de impulsos da montagem entre as partes da montagem. (1969, p. 108)


Greenaway segue de perto essa montagem chamada de montagem intelectual que, por sua vez, exige a presença de um espectador intelectual que compreende o jogo e a produção de sentido que daí decorre. Caso natural, quando se trata de narrativas dialéticas que partem de uma situação conflituosa para o estabelecimento de uma nova situação, na qual, de modo exemplar, os problemas já tenham sido solucionados ou mais controlados, permitindo a vida seguir seu curso sem sérios atropelos.
No filme em questão, porém, a montagem em profundidade não fica apenas no campo do enunciado. Por exemplo, na seqüência inicial, in medias in res, acompanhamos Próspero ordenar que Ariel faça a tempestade, cause o naufrágio e traga os inimigos à ilha. Nesse núcleo accional, vemos simultaneamente Próspero em sua piscina, articulando e executando o plano de vingança; vemos a embarcação ser surrada pela tempestade; seguimos ainda os espíritos da ilha em ação; os náufragos sendo resgatados; e, com valor simbólico de peso considerável, podemos ler o texto manuscritado da peça de Shakespeare sobreposto às várias interfaces que se amalgamam na película.
Tal procedimento tecnológico, produzido com o auxílio de variadas gamas de filtros, softwares gráficos e ambientes computacionais multifuncionais, como nos lembram Yvana Fechine (2003), criam algo mais do que o sentido natural ocasionado pela montagem em profundidade, proposto por Eisenstein. Planos são produzidos, nos quais vemos não apenas um signo de linguagem específica em interação com signos da mesma linguagem. Tem-se, aí, a interação de enunciados completos veiculados por meios diferentes.
Como se colocou acima, na longa primeira seqüência, o diretor já nos fala ao que veio, pois imagem, escrita, cores, coreografia, escultura, pintura, entre outros, estão juntos para criar uma espécie de roteirização hipermidiática, conceito explicado por Gosciola (2003). O receptor intelectual, proposto por Eisenstein, tem acesso ao compósito artístico em toda a sua simultaneidade e, se quiser, pode entrar no conjunto por qualquer dos vieses semióticos possíveis. E as possibilidades de escolha de percursos do roteiro são grandes, já que a criatividade da aparelhagem hipermidiática oferece veículos ágeis e de acessibilidade convidativa ao produtor e ao consumidor.
O produto artístico de Greenaway é, pois, um encontro criativo e saudável com o produto artístico de Shakespeare. O terreno antigo é invadido, reproduzido, mas com o cuidado, quase que romântico, de se preservar sua positividade, no que diz respeito à valiosa mensagem humanista que ele transmite através dos séculos. Prova disso é a seqüência posterior à confirmação do noivado entre Fernando e Miranda, na qual temos o que seria uma montagem pura, nos dizeres de Eisenstein (1969). Nesta situação, temos a simplicidade do Protagonista que sai da multiplicidade intersemiótica a sua volta, a cortina desce as suas costas, e ele declama o que seria o sentido central da narrativa, tanto escrita quanto fílmica:


Próspero:

Estais a olhar, meu filho, de uma maneira estranha; pareceis aterrados; alegrai-vos senhor. Os nossos divertimentos estão concluídos. Estes nossos atores, como vos disse, ora, assim como a ilusória realidade de tal visão se desvaneceu, hão de do mesmo modo esvair-se as torres que se elevam até às nuvens, os palácios soberbos, os templos majestosos e até o próprio globo com quanto nele existe. Nós somos feitos do mesmo estofo dos sonhos, e a nossa curta vida está encerrada entre dois sonos. Senhor, estou um pouco triste; perdoai à minha fraqueza; o meu cansado cérebro está perturbado; não vos inquieteis com esta minha enfermidade; se quereis, entrai para a minha gruta e descansai: eu darei uma volta ou duas para acalmar o meu perturbado espírito. (1942, p. 477, o grifo é nosso)


A montagem pura, conceituada por Eisenstein, é uma situação singular nesse contexto de interpenetração semiótica. Ela não diminui o potencial do arsenal tecnológico do texto intersemiótico quando ressalta uma mensagem que poderia estar em qualquer outro suporte. O texto clássico e o hipertexto contemporâneo criam, pois, o lugar que representa as possibilidades deste código de base, que é a narrativa.
Com estas reflexões breves, pensamos contribuir para um posicionamento mais flexível do pesquisador frente a várias mídias que existem em fluxo de purezas e imbricações nos constantes processos comunicacionais nos quais estamos imersos. A fusão da imagem com a palavra, e com tantos outros signos, segue seu curso, sem que sejamos obrigados a julgar tal processo sob ótica moralista ou ética quanto à linguagem usada e, sim, a priori, que nos posicionemos perante a estruturalidade e a funcionalidade de um meio que, ao contrário da pretensa substancialização, concentra-se para se tornar diáfano no instante seguinte.