Acrescentar liberdade de ação à desigualdade fundamental da condição social, impondo o dever da liberdade sem os recursos que permitem uma escolha verdadeiramente livre é, numa sociedade altamente hierarquizada como a brasileira, uma receita para uma vida sem dignidade, repleta de humilhação e autodepreciação (Guita Grin Debert. O Idoso na Mídia. Revista Com Ciência).
Exploraremos, nesse artigo, alguns aspectos sobre a leveza e o peso da existência, qualidades presentes de modo simultâneo, em uma fase de desenvolvimento da vida humana, que é a velhice. Com o número de pessoas idosas aumentando consideravelmente, tanto nos países avançados como naqueles em desenvolvimento, políticas governamentais e não-governamentais são elaboradas e implementadas no sentido de se encontrar um equilíbrio intergeracional para o bem-estar coletivo. Nesse meio, o que pensamos sobre a velhice, aparados pelos discursos do senso comum, da Gerontologia e da Geriatria, caminha por dois pólos de representação: o pólo da pessoa idosa como sujeito a ser amparado em suas deficiências psicofísicas ou, então, o pólo da pessoa idosa que é capaz de, individualmente, resolver as suas necessidades cotidianas.
Para iniciar nossa abordagem do tema velhice, surge-nos à mente uma das histórias da Mitologia Grega, que nos conta os feitos do herói Perseu. Herói oportuno, pois nos dá um exemplo de como jovem pode relacionar-se com a velhice para conseguir atingir seus feitos gloriosos, com a finalidade de ser alçado a um lugar de honra no mundo olímpico. Sabemos que o jovem Perseu é respeitado por seus pares por ter conseguido decepar a cabeça de uma das Górgonas, a poderosa Medusa, sem ser transformado em estátua e neutralizando, depois dessa conquista, seus potenciais inimigos com essa força prodigiosa, pois todos que olhassem diretamente para os olhos de Medusa, mesmo depois do monstro morto, eram imediatamente petrificados.
Perseu, para conseguir esse feito inaudito, deveria chegar ao lugar habitado pelas Górgonas, passando pelas Graias, protetoras. Essas entidades, as Graias, são divindades que já nasceram velhas e guardam os fatos passados, presentes e futuros, tanto os dos homens quanto os dos deuses. Apesar de sua força primitiva, as Graias são ludibriadas por Perseu e obrigadas a darem o roteiro para o lugar pretendido; contam ao rapaz o percurso para se atingir a região de Medusa. Com outros subterfúgios, o jovem chega ao lugar e ardilosamente consegue seu troféu.
Interessa-nos de perto, mais do que os feitos do mundo antigo, como a velhice já é representada no mundo helênico e como seus ecos ainda batem forte aos nossos ouvidos contemporâneos. As Graias, são três senhoras, numa mistura de características humanas e animais, que têm a particularidade de já terem nascido velhas e ficarem disputando entre si um único olho e um único dente. Daí, seu caráter de vigilantes, já que podem ver, quando uma delas fica com a posse do olho, e falar, quando um delas fica com a posse do dente, com grande clarividência dos segredos do mundo subterrâneo e do mundo da superfície, como nos fala Jonh Bart (1986).
O mito nos oferece uma peculiar relação entre a juventude, em fase de afirmação, e a velhice, já estabelecida em sua autoridade de validar caminhos e práticas de ação tidos como produtivos para o bem estar da coletividade. Poderíamos falar que ele aborda, dentre outras riquezas sócio-culturais, os constantes confrontos entre as faixas etárias, principalmente no que diz respeito à juventude e ao mundo adulto que se colocam frente a frente com a dimensão da velhice.
Leveza e peso são evocados pelo mito. Leveza da juventude em sua confiança cega nas suas próprias forças e em seus arroubos perante a irremediável linha do progresso; peso na falta de meios para se atingir tal progresso. Leveza da velhice por deter os conhecimentos do saber-agir para enfrentar e solucionar as situações de perigo; peso da velhice na quase necessidade de ser enganada para que o jovem atinja seu lugar no meio dos demais adultos.
Como Perseu sai-se desse confronto? Vitorioso, casa-se com Andrômeda, tem seus filhos e governa seu reino. No entanto, as Graias não o perdoam; ao contrário, parecem cobrar o preço de ajudarem, pelo estratagema do engodo, o jovem herói a encontrar a fama. Perseu, com o passar do tempo, vai transformando-se no homem de vida sedentária, barrigudo, sem aventuras instigantes e sua vida insossa caminha-se para a velhice. Os deuses, porém, como que se apiedando de tal destino, transformam-no, e aos entes mais próximos, em estrelas. Perseu é eternizado, petrificado pelo processo de museificação da memória helênica. Leveza da vida, pois, transformada em peso de um saber-viver memorialístico que, talvez, esperaria um novo jovem herói para expropriar seu arquivo repleto de tecnologia para se enfrentar perigos de várias ordens.
Do mito passamos às nossas cotidianas relações sociais, no que elas podem nos ensinar a respeito das relações entre o mundo do homem, em fase de produção convencional, e o homem na idade da velhice. Uma dialética entre a leveza e o peso também aí pode ser seguida, sendo que por muitas vezes, o espírito do peso parece delinear os resultados de tal encontro. O mundo do adulto, em fase de produção, não sabe o que fazer com a pessoa idosa ainda viva. Mesmo que esse mundo conheça e use os valores positivos de seus velhos, esses mesmos velhos, antes de tornarem-se estrelas da constelação de nossas mitologias familiares e sociais, são configurados, predominantemente, pela representação de subjetividades impregnadas por uma concentrada e repugnante carga de peso para si mesmos e para seus contemporâneos.
Nessa fase de excesso de peso que atinge um estrato populacional específico, mas que reflete a qualidade negativa na coletividade, vemos os poderes institucionalizados, governamentais e não-governamentais, internacionais, nacionais, estaduais e municipais, se organizarem para colocar o tema em pauta.
A ONU – Organização das Nações Unidas – na II Assembléia Mundial do Envelhecimento, de 8 a 12 de abril de 2002, em Madri, continuou suas tentativas de unificação global de políticas de ação social para assegurar condições de melhoria de vida para esse contingente populacional, o da pessoa idosa. Nesse encontro internacional, foi formulado o documento intitulado Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento, disponibilizado no Brasil pelo Conselho Nacional dos Direitos do Idoso e pela Secretaria Especial dos Diretos Humanos da Presidência da República.
Para esse documento, o segmento populacional da velhice está tendo, e ainda terá, um aumento sem precedentes na história. Pelas palavras do Secretário Geral da ONU, Sr. Kofi Annan (2003: p. 13), hoje temos razões fundamentais e imperiosas para voltar a refletir sobre a questão. O mundo está passando por uma transformação demográfica sem precedentes. Até 2050, o número de idosos aumentará em aproximadamente de 600 milhões a quase 2 bilhões. No decorrer dos próximos 50 anos haverá no mundo, pela primeira vez na história, mais pessoas acima de 60 anos que menores de 15.
Universaliza-se, pois, a percepção de novas relações sociais frente ao novo fenômeno e, conseqüentemente, novas necessidades vão tomando a pauta das instituições civis e governamentais, responsáveis pelo bem-estar social. E percebemos que uma das diretrizes, presente no pensamento gerontológico contemporâneo, que baseia a junção dos esforços institucionais, é a de diminuir a incapacidade psicofisiológica do sujeito com mais de sessenta anos.
Tal direção vem substituindo aquela convencional crença de que a pessoa idosa estava condicionada à exclusão do mercado tradicional de trabalho, bem como das demais relações sociais e, conseqüentemente, deveria ser alienada da vida social por algum poder institucional. É o que se convencionou chamar, na jargonística da Gerontologia, de “o idoso como fonte de miséria” que contrapõe ao que hoje se implementa como a política do “idoso como fonte de privilégio”.
O quadro de subvalorização do perfil do idoso, apesar das suas limitações em valorizar as potencialidades da pessoa em condição de exclusão, foi um dos primeiros avanços no terreno das teorizações e práticas a respeito da velhice. Apesar de ainda termos ações sociais nessa linha de compreensão, vemos surgir características de uma segunda disposição da representação da constituição e do papel do idoso na nossa sociedade, a da velhice competente, como já mencionamos.
Essa segunda configuração do papel da velhice pretende apresentar o idoso como pessoa ainda apta a agir com capacidades semelhantes ao do adulto. Dessa forma, os programas sociais pretendem reeducá-la para agir como pessoa independente e auto-suficiente, capaz de ainda fazer parte do mercado de trabalho a sua volta.
Aparentemente, quando vemos o idoso tornar-se responsável por si mesmo, parece-nos um acontecimento positivo, pois pensamos ver o surgimento do equilíbrio intergeracional que acabaria com uma carga de esforços tidos como extra para as diversas instituições. No entanto, sabemos que o exagero das representações gratificantes da velhice acaba por criar tantos problemas quanto a idéia de que tal fase da vida é feita apenas por uma condição miserável, tanto em seu nível mental quanto em seu nível físico.
Saímos de um estereótipo da velhice e caímos em outro estereótipo, sem que a questão seja resolvida ou, em hipótese pessimista, teríamos a situação do idoso mais problemática.
O Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento, texto que começamos a explorar atrás, esforça-se por balancear suas ações entre os dois pólos que vimos acima. As ações governamentais e não-governamentais que asseguram um desenvolvimento pleno do ser humano, com ênfase em sua fase de velhice, são inseridas em diretrizes e temas que visam a consecução de objetivos bem definidos. Os temas, firmados entre os países participantes, foram englobados no que se convencionou chamar de orientações prioritárias, em número de três: a primeira diz respeito a pessoas idosas e ao desenvolvimento; a segunda, preocupa-se com a promoção da saúde e bem-estar da velhice; a terceira, fomenta a criação de ambiente propício e favorável ao envelhecimento e à pessoa idosa.
A terceira orientação prioritária, dentre outros tópicos e objetivos, traz o tema que diz respeito às imagens do envelhecimento, que objetiva o maior reconhecimento público da autoridade, sabedoria, produtividade, dentre outras contribuições importantes dos idosos. Acreditamos que, nesse tema, está inserido o espírito de nosso artigo, já que estamos acompanhando possibilidades de se perceber a velhice relacionada com outras faixas etárias.
De modo sumário, como mencionamos de início, demonstramos como a questão do envelhecimento e da velhice vem sendo institucionalizada por um organismo internacional e dirigindo as políticas particulares de cada país. Dessa forma, uma orientação integrada, sobre ações a serem implementadas, espraia-se do nível internacional para os níveis federais, estaduais, municipais e não-governamentais. Se levarmos em conta as diferenças de cada povo, de cada cultura, no trato com a pessoa idosa, temos no nível mundial um consenso em juntar esforços para procurarmos a leveza da vida em uma fase que parece ser completamente dominada pelo peso da falência da vida.
Do sumário das diretrizes prioritárias que a ONU nos apresenta, interessa-nos, mais de perto, a preocupação que a ação internacional denominou por imagens do envelhecimento. Isso significa que “uma imagem positiva do envelhecimento é um aspecto essencial do Plano de Ação Internacional sobre o Envelhecimento, 2002” (ONU, p. 72-73).
A saúde e o gozo pleno das capacidades psicofísicas são, de fato, muito importantes para a pessoa idosa. No entanto, o custo disso (a concentração da assistência pública, o custo com serviços de assistência à saúde, as pensões e outros serviços) funciona como estímulo para que a população, de produtividade convencional, produza e promova uma série de imagens negativas do envelhecimento e da velhice. Assim, as imagens que destacariam o atrativo, a diversidade e a criatividade dos idosos e sua contribuição vital para a sociedade, devem competir com as imagens negativas para despertar a atenção dos demais estratos etários da sociedade.
Nossa sociedade midiática, além de nossa literatura erudita ou popular, fazem-nos engolir, constantemente, imagens distorcidas sobre o processo do envelhecimento e, conseqüentemente, da velhice. Pelos veículos de comunicação, a pessoa idosa só adquire valor positivo quando nos pode auxiliar de modo pragmático, ou seja, de forma pontual e sem compromisso de contrapartida. Auxílio conquistado, a pessoa velha é descartada e encaminhada para situação semelhante àquela de museificação, que abordamos no início desse artigo, quando abordamos a condição final do herói Perseu. Leveza da vida que deveria destruir o peso da morte. Porém, mais uma vez o maniqueísmo mostra-se estéril e não é capaz de nos colocar frente às verdadeiras feridas de nossas fábricas de imagens estereotipadas.
Simone Beauvoir (1990), em seu básico ensaio sobre a velhice, conta-nos uma das histórias de Buda, que pode enriquecer nossas reflexões. É a seguinte: Quando Buda era ainda o príncipe Sidarta, encerrado por seu pai num magnífico palácio, dele escapuliu várias vezes para passear de carruagem nas redondezas, Na primeira saída, encontrou um homem enfermo, desdentado, todo enrugado, encanecido, curvado, apoiado numa bengala, titubeante e trêmulo. Espantou-se, e o cocheiro lhe explicou o que era um velho: “Que tristeza – exclamou o príncipe – que os seres fracos e ignorantes, embriagados pelo orgulho próprio da juventude, não vejam a velhice! Voltemos rápido para casa. De que servem os jogos e as alegrias, se eu sou a morada da futura velhice?”
Ser a morada da velhice é um dos vislumbres que o jovem Buda tem das verdades mais profundas. Nesse quadro não se pode agir como Perseu diante das Graias, num aparente confronto natural entre as várias gerações, no qual a velhice sempre dever ser ludibriada para que o herói receba sua coroa de louros. Enganosa vitória seria essa, já que o peso da petrificação, outrora protegido pelas velhas senhoras, é elemento inerente do rapaz que, com todos os seus ardis, pensa em dele fugir pela ilusória leveza conferida pela posse de poderes que se tornam, assim que usados, falíveis.
O jovem e o adulto, que conhecem a velhice dentro de si mesmos, estariam mais preparados para receber, de modo crítico e produtivo, as imagem negativas do envelhecimento e da velhice que lhes são oferecidas. Assim, o recolhimento à casa, semelhante ao do jovem Buda, serviria para o ajuntamento de esforços que assegurasse um reconhecimento público da autoridade, sabedoria, produtividade e outras contribuições importantes que vêm da velhice.
Nesse sentindo, o de percebermos a velhice como uma característica inerente a nossa constituição, vemos a urgência de seguirmos a orientação prioritária da ONU quanto a este tema: há a necessidade de implementarmos, em nosso meio social, medidas que elaborem e promovam amplamente um marco normativo, onde haja responsabilidade individual e coletiva de reconhecer as contribuições passadas e presentes dos idosos, procurando resistir a mitos e idéias pré-concebidas e, conseqüentemente, tratar os idosos com respeito e gratidão, dignidade e consideração.
Devemos estimular, como espectadores críticos e ativos, os meios de comunicação de massa a promoverem imagens que destaquem a sabedoria, os pontos fortes, as contribuições, o valor e a criatividade de mulheres e de homens idosos, inclusive daqueles idosos com incapacidades.
Que se proliferem as portas abertas, proporcionadas pelas universidades, faculdades e escolas, para o estímulo de educadores que reconheçam e incorporem, em seus cursos, as contribuições feitas por pessoas de todas as idades, inclusive as idosas. Este estímulo funcionará para que o educando perceba e tenha ilustrada, em sua vida sócio-cultural, a diversidade plena da humanidade.
Sem dúvida, a mídia tem forte papel a desempenhar na implementação de novas imagens do envelhecimento e da velhice. É necessário, pois, reconhecer que tais meios de comunicação são precursores da mudança e podem atuar como fatores de orientação na promoção do papel que toca aos idosos nas estratégicas de desenvolvimento, inclusive nas zonas rurais. Além disso, salienta-se a necessidade de novos espaços, que esses meios de comunicação poderiam abrir, para a pessoa idosa apresentar suas atividades e preocupações cotidianas.
Poderíamos publicar compêndios com ações que, efetivamente, equilibrariam a questão do peso e da leveza no âmbito da velhice e do envelhecimento. Porém, acreditamos que o discurso gerontológico, ou outros afins, consegue, hoje, aproximar-se, com aparelhagens refinadas e competentes, do fenômeno em questão. Profissionais, de várias áreas do conhecimento, juntam-se para se especializarem no assunto, e governos e órgãos não-governamentais já encaram, sem tantos maquiavelismos, o encontro entre gerações que outrora, em nossa cultura ocidental, marcavam presença em beligerantes confrontos. Assim, pensamos que se relativiza a distância entre o peso e a leveza, entre o meu ser produtivo e bem localizado socialmente, de hoje, com a velhice que me habita e, brevemente, tomará seu centro. Perseu, talvez, poderá, em um futuro próximo, convidar as Graias para um espontâneo, desinteressado e alegre vôo pelo mundo dos homens.
Um comentário:
Um idealista, poético, que consegue expor de forma tão clara, tão natural e possível um processo tão dolorido e ao mesmo tempo tão rico quanto é o do envelhecimento. E com argumentos pertinentes, super embasados. Ah, dá gosto de ler! Você citou Beauvoir e eu me lembro de ficar muito tempo mastigando uma frase dela – “viver é envelhecer, nada mais” – e de como isso me doía. Não mais... Adorei!
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